Conhecimento e transformação social

Cesar Mangolin

Já postei textos fazendo a crítica da educação formal neste espaço. A insistência no tema, no entanto, não é em vão: muitos, ou quase a totalidade das pessoas fazem uma associação direta entre educação e um mundo melhor.

O raciocínio é simples: havendo um povo que tem acesso ao conhecimento, esse povo ganha, como que por acréscimo da deusa sabedoria, a glória de atingir os píncaros do bem viver, uma vez que sabe reivindicar melhor, escolher melhor seus representantes, exigir seus direitos constituídos etc.

Até mesmo entre a esquerda revolucionária temos exemplos dos que têm uma fé bastante grande na tarefa de ensinar, como instrumento fundamental para a luta de classes, ou a famigerada “consciência de classe”, que ninguém, a não ser em termos idealistas, conseguiu ajustar bem.

Pois bem, nosso tema se restringe aqui à relação entre conhecimento e a associação a uma vida melhor.

Temos provas suficientes desse engodo. Por exemplo: o ganhador do Nobel de física de uns anos atrás deve parecer a todos como um homem que possui conhecimentos vastos. Isso não o impediu de tratar preconceituosamente os negros e asiáticos, definidos como inferiores aos brancos por ele.

O acúmulo do conhecimento não permite, pura e simplesmente, que as pessoas pensem para além das estruturas da vida de agora. Pelo contrário: no geral, esse conhecimento obtido é exatamente aquele necessário para que as atuais relações se reproduzam. Os professores, pobrezinhos, apesar de se verem como um dos elementos mais importantes da sociedade, são os que, imediatamente, cumprem esse papel.

Ora, qualquer problemática, definida pelas questões que a envolve, deve ser compreendida pela contingência da formulação dessas mesmas questões. Isso pode ser dito, de forma mais simples e direta, que as questões levantadas diante de um problema não são formuladas de forma pura pelo intelecto puro, mas determinadas, ou sobredeterminadas, pelo meio em que se vive. É o mesmo que dizer que as questões que são levantadas possibilitam respostas dentro da mesma ordem, portanto, são, no geral, conservadoras de nascimento.

Alguns diriam que o indivíduo pode romper com essa contingência… Daí que o recurso a esta figura – o “indivíduo” – já é um retrato das possibilidades do pensar nos quadros do mundo que vivemos. Que é o indivíduo?

O subjetivo não é construído a parte do conjunto, ou do meio. Isso nos leva à conclusão que as questões levantadas, que caracterizam uma problemática qualquer não são obra de indivíduos, mas determinadas pelas relações predominantes e pela ideologia dominante. O meio faz o homem, que não está dividido entre o público e o privado, noções jurídicas do mundo burguês que pretendem qualificar, nesse campo, dois momentos da vida: a social e a individual, assim como muitos pensadores da esquerda insistem em recorrer às idéias de sociedade civil e sociedade política.

Os padrões mais elevados de vida em países com índices mais elevados de escolaridade não são explicados por estes últimos, ao contrário: esses índices de escolaridade são explicados pelos níveis mais elevados de vida nesses países. Como chegaram até aí? Diferentes vias do desenvolvimento capitalista e, com peso maior, o papel da luta de classes nesses países.

Ainda que o Estado de Bem-Estar Social esteja em franca decomposição na Europa, sua origem remonta também às lutas dos trabalhadores que, em muitos casos, sucumbiram às concessões feitas pelas burguesias locais às custas da exploração dos povos do então chamado “terceiro mundo”.

Os mesmos vícios, o mesmo egocentrismo, os mesmos preconceitos são encontrados em países como o Brasil e nesses mencionados acima. Mudar a forma da grosseria (ou da estupidez egocêntrica) é apenas uma mudança de forma, não de conteúdo. A forma de expressar o individualismo exacerbado também depende das condições objetivas de cada formação social. O importante é que isso é uma característica predominante das formações sociais capitalistas, independente da maneira como ela vem à tona.

O conhecimento não leva à revolução, não leva à transformações sociais. Mesmo porque ele está todo carcomido pelas representações individualistas que tem da vida, de seu objetivo, qual seja, o enriquecimento individual (associado à felicidade e à realização).

Os revolucionários são formados na luta, num longo caminho que tem como ponto de partida não uma aula ou um curso, mas o colocar-se em movimento porque algo está errado. É esta indignação inicial, objetiva, que pode redundar na formação de revolucionários. O acesso que têm depois às teorias não vai aparecer como o véu descortinado diante de seus olhos, mas apenas a explicação sistemática daquilo que já sentiram, daquilo que estão já vivendo.

Isso os intelectuais de ofício não são capazes de entender. Por duas razões: primeiro, porque lhes tira a suposta importância; segundo (e principalmente), porque estão engessados até a medula de uma percepção pequeno-burguesa do mundo. Por isso que as vertentes messiânicas do marxismo têm tão grande acolhida dentre eles. Por isso que os partidos mais esquerdistas e infantis são os que têm maior número de professores e do componente pequeno-burguês.

Por isso que Lênin sugeria cuidado especial com os intelectuais: seu caminho de pequeno-burguês a revolucionário é muito mais longo e sinuoso que o do proletário.

Pena que esses intelectuais tenham tomado a maior parte da formulação progressista e de esquerda no Brasil e pelo mundo afora… Temos um longo trabalho pela frente, que pode até passar pelas escolas e universidades, mas que tem seu ponto nevrálgico nas ruas e na luta de classes, exatamente onde está mais frágil.

8 comentários sobre “Conhecimento e transformação social

  1. Professor,

    Eu entendo quando você afirma que “O conhecimento não leva à revolução, não leva à transformações sociais”, por um lado, já que a maioria das pessoas que detem de conhecimento utiliza para escravizar as pessoas, mas por outro lado, será que o conhecimento não é o caminho para as pessoas despertarem as suas consciencias e sairem do estado de zumbi?

    abs

    o pólo Guarulhos está sentindo a sua falta…

    Aline

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    1. Aline
      pense que conhecimento não é algo neutro, como se nascesse da pureza do intelecto, sem a determinação do mundo objetivo, das relações nas quais vivemos. Como disse no texto, as próprias questões levantadas em torno dos problemas que temos são viciadas pelas soluções possíveis dentro dessa mesma ordem. O conhecimento que pode levar a uma prática militante no sentido das transformações sociais é aquele obtido na conflituosa síntese entre a prática e a construção teórica. Pense na sua realidade mesmo, na realidade que a cerca: você conhece um monte de gente que faz um curso que supostamente descortina as relações nas quais vivemos tais quais são. Tem um monte de professores que tratam disso o tempo todo (por vezes de forma bem precária, é verdade – rs). Quantos desses que têm acesso a esse conhecimento tornam isso prática militante transformadora? garanto que nem mesmo os professores… Conhecer só não basta e, além disso, conhecer não leva, necessariamente, à prática.
      Apesar da forma (ou seja, da própria distância), sinto saudade do contato que tinha com vocês e dos debates possíveis pela internet. Sinto saudade disso apenas, sinceramente. Daquele povo de lá da Metodista nem um pouco.
      Tenha certeza que fico muito feliz em podermos continuar esses debates por aqui também e que sempre respeitei bastante vocês todos. Não me justifiquei quando da minha saída porque me cortaram os canais de acesso ao sistema antes mesmo de saber da demissão! Infelizmente, os mestres de lá são bastante diferentes na vida prática do que tentam parecer na frente das câmaras…. Mas isso a vida resolve.
      Mande um beijo para o povo todo e diga que não morri! Podem fazer contato sempre que quiserem.beijo.

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  2. Professor César,
    Eu compreendo o que você tá falando… mas, eu não me conformo, parece que a maioria lá na Metodista só serve ao Deus mamon, e é isso que me deixa indignada, é tanta hipocrisia no meio… O sistema é tão cruel que cega às pessoas e passamos consentir com tudo como se fosse algo natural, sinceramente, eu não quero ficar somente no formato dessa formação, se eu não colocar isso na prática para transformar as coisas eu vou acabar enlouquecendo …
    Ahh só uma coisinha, semana passada a minha colega foi se apresentar a banca e foi reprovada, ela queria contestar e o coordenador do pólo pediu para ela se calar para não gerar mais conflito, é inacreditável, no próprio curso de ciências sociais a gente não poder ter voz …
    Saudades das suas aulas…
    Beijo
    Aline

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    1. Aline
      diga pra sua amiga que “ter voz” é uma conquista, não uma benfeitoria dos que fazem calar.
      A coisa lá pela Metodista é muito estranha mesmo. Na verdade não é por acreditar naquilo, mas apenas por sobrevivência e pra dar sentido a uma vidinha bem besta. No curso que você faz mesmo,o que vemos é gente se rastejando e sorrindo aqui e ali atrás de umas aulinhas. Outros se apegam a esse ambiente conservador como se fosse acoisa mais importante do mundo.Não são capazes mesmo de fazer qualquer crítica ao p´roprio curso.Enfim, deixe que se rastejem.
      Colocar em prática e avançar noconhecimento é uma boa coisa. Eu optei por fazer isso sendo comunista e militando no PCB. Você deve buscar seu caminho. Se quiser o PCB ficarei feliz!
      Conversamos mais.
      Mande e-mail para mangolin.cesar@gmail.com . Não entro todos os dias no blog.
      beijo.

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  3. Professor, o que o sr. me diria sobre a relação entre conhecimento e transformação num âmbito de conhecimento do Direito, ou dos direitos de cada um. Levantou essa discussão em minha faculdade e não concordei muito com a opinião dos colegas, de que após estudar direito, poderíamos “fazer justiça”. No meu ponto de vista, somente adquirir conhecimento do ordenamento jurídico de nosso país não nos leva a fazer justiça, porque justo por enquanto so é o texto da lei, sua aplicação ainda não é… O que o sr. poderia me dizer sobre o verdadeiro conhecimento do direito, e a transformação que essa conhecimento pode levar?

    Sou iniciante no estudo do direito.

    Henrique Mariano

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    1. Meu caro: há muito a falar sobre isso. De maneira rápida e ara sua reflexão, vale pensar em duas coisas: primeira, a Justiça com o “j” maiúsculo não é necessariamente justa; segunda, as leis e toda a estrutura jurídico-politica são expressões das relações sociais nas quais vivemos. Somente se perdem nas ilusões das “leis mais precisas e duras” aqueles que não compreendem que elas são produto das relações sociais e de relações de força, da política, no seu sentido mais amplo. Continuemos a conversar. Abraço.

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