Mitos e verdades.

Cesar Mangolin.

Recebi a tarefa de escrever algo breve com esse título: mitos e verdades. As possibilidades são muitas, sem dúvida, portanto, optei por uma breve reflexão sobre os termos, trazendo algo para nossa realidade.

Mitos e verdades: os dois termos não devem ser pensados como antônimos.

O que chamamos de mito não é uma simples mentira, ou uma enganação. Seja atribuindo a seres e forças sobrenaturais a origem do mundo material e da vida, seja expressando por meio de relatos fantásticos as razões dos acontecimentos, a justificativa de uma hierarquia social qualquer, a possibilidade da boa colheita, a sorte na guerra, os fenômenos naturais, a razão de nascermos e morrermos e o que pode ocorrer depois etc., os mitos cumpriram e cumprem a tarefa de dar sentido a ações ou condições, contribuindo para que uma determinada forma de organização social se reproduza, no mínimo, de maneira resignada.

A verdade, da maneira mais simples, a compreendemos como aquilo que corresponde ou mais se aproxima da realidade objetiva, ou seja, o que é capaz de descrever algo do mundo de maneira precisa. Postular a objetividade é tarefa da ciência e da filosofia. Desde a antiguidade, com a tentativa racional e lógica de explicação das coisas, os mitos perderam o espaço antes ocupado, mas não desapareceram. Podemos pensar, analogamente, em mitos contemporâneos.

Os mitos carregam, portanto, um tanto de verdade. Nossos parentes mais distantes, nas primeiras comunidades humanas sedentarizadas, poderiam até atribuir aos deuses o milagre da germinação e a boa colheita, mas sabiam muito bem que não teriam o que comer sem a observação, o correto manejo, a quantidade certa de água e de outros nutrientes, ou seja, com muito trabalho e aprimorando constantemente o conhecimento sobre a agricultura. Do contrário, teriam de retornar ao nomadismo coletor e à caça.

A tarefa dos mitos, num tempo em que nosso conhecimento era mais reduzido, era dar às pessoas algum sentido, explicação, ainda que num plano fantástico. Jamais as coisas poderiam ficar no vazio da incerteza, da possibilidade de eventos casuais. Ao lado da nossa capacidade e necessidade, por vezes, pretensiosa, da explicação, o medo da vulnerabilidade e do imprevisível explicam a razão das construções míticas.

Com o avanço do conhecimento humano, os mitos tendem a ocultar condições, no geral, muito ruins, e a legitimar posições deploráveis: desigualdades sociais gritantes; disposições violentas e egoístas; preconceitos e discriminação; o conservadorismo mais cinzento… Encontramos essa disposição no nosso tempo em manifestações religiosas e outras práticas que ocupam o mesmo espaço, como as “religiões civis”, que mistificam e atribuem significados sobrenaturais a determinados símbolos e instituições, até mesmo a uma pessoa. Podemos pensar nas formas do culto à nação e as patriotadas típicas, como a exaltação da bandeira, dos hinos e da atribuição de tarefas heroicas e salvadoras a instituições como as forças armadas e congêneres. As incertezas do presente são aplacadas com dupla fantasia: de um lado, um inimigo à espreita e que deve ser combatido e destruído, ao qual são atribuídos todos os males e perigos; do outro, um futuro glorioso que será a recompensa pelas agruras e pelos sofrimentos do presente. Uma razão para suportar a vida agora, outra razão para continuar a viver. Isso não é expressão da esperança: é a forma pura da resignação e da covardia.

A ciência e a filosofia nos permitiram avanços gigantescos, inclusive para sabermos dos nossos limites e para afirmarmos que nem tudo podemos explicar e, nem por isso, é razoável apelar para algum argumento sem base material. Nossa capacidade de avançar para além das aparências e explicarmos o que as coisas são, inclusive as estruturas sociais, nos permite “desencantar” o mundo.

As incertezas quanto ao futuro imprevisível são racionais, tanto quanto a nossa capacidade de compreendermos as possibilidades abertas e as probabilidades. É na ação política organizada e planejada que reside a possibilidade de construirmos relações sociais que eliminem as desigualdades. A ciência e a filosofia são instrumentos para isso: não precisamos criar deuses, mitos e mais sacrifícios. A experiência recente do Brasil parece deixar isso muito claro.

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