Artigo sobre o bicentenário da Independência do Brasil

Abaixo segue o link para acesso a um artigo meu, publicado no último número da Revista Princípios, cujo tema central é o bicentenário da Independência do Brasil.

 O artigo tem como objetivo expor uma reflexão sobre os limites da independência do Brasil a partir das definições e contribuições dos clássicos do materialismo histórico. O título completo é: “O bicentenário da Independência: os comunistas, a luta de classes e a questão nacional”.

Segue o link e fico à disposição para os debates.

https://revistaprincipios.emnuvens.com.br/principios/article/view/206

O Conto da Aia e o canto dos Malafaia

Cesar Mangolin

Esclareçamos, primeiro, o título.

O sobrenome da figura abjeta aparece aqui somente para tornar o título uma rima infeliz. Mais nada. Na verdade, mais tudo: a figura representa o conjunto dos chamados “pastores” das igrejas, mas inclui também os padres católicos e afins. Com algumas exceções, essas figuras assumiram a linha de frente da representação do que, desde 2013, se tem chamado de “gente de bem”: aqueles que conciliam, com tranquilidade, caridade, pagamento de impostos (nem sempre, vide o “véio” da Havan), preconceito e chacina.

Já a série e o livro que são traduzidos como O conto da Aia, para quem não conhece, se passa em um país (chamado Gilead) que teria sido resultado de uma divisão dos EUA após uma revolução conservadora, organizada por um grupo religioso. É uma teocracia: tudo se explica e justifica a partir da Bílblia e de uma moral religiosa. As mulheres são submetidas aos homens e não podem nem mesmo ler e escrever. Há as esposas dos comandantes (que formam a elite do país), as tias (que controlam as aias), as Martas (escravas domésticas de serviços gerais), as esposas de trabalhadores, as que são obrigadas a se prostituírem, as que são mandadas aos campos de trabalho forçado e as aias. Estas últimas são estupradas mensalmente pelos comandantes, supostamente para gerarem filhos, com o auxílio das esposas. A sociedade em que viviam padecia da baixa taxa de natalidade, daí a “santa” ideia de utilizar mulheres aparentemente transgressoras das leis impostas como reprodutoras. Há um ritual religioso, baseado numa passagem bíblica que orienta um homem a “tomar” outra mulher para gerar um filho, visto que a “sua” era infértil. Tanto na Bíblia quanto na série, as mulheres são coisas submetidas aos interesses dos homens e essa é a única razão de existirem. As que engravidam têm os filhos arrancados após a amamentação, que se tornam filhos oficiais do comandante e da sua esposa. Qualquer ação contraceptiva, abortiva ou que possa afetar uma criança ou uma mulher grávida é considerada um crime grave.

Mas qual relação entre a série e os condutores dos rebanhos cristãos do Brasil? Muitas, mas destaco dois aspectos apenas, ficando a possibilidade de explorarmos mais essas similaridades em outras ocasiões.

Primeiro, e como expressão mais pura da Jesulândia, as relações sociais baseadas nos preceitos religiosos que, de um lado, dão um tom sacrossanto para todos os ambientes e, ao mesmo tempo, promovem uma violência bestial, direta e simbólica, constantemente. Na série, as pessoas se cumprimentam com saudações que fazem alusão ao divino (“abençoado dia”; “sob o olhar dele”), andam e se vestem de acordo com as normas religiosas e, ao mesmo tempo, passam por fileiras de pessoas enforcadas em praça pública, são vigiadas constantemente e observam espancamentos, assassinatos, sequestros etc. Mas a moral religiosa é a que justifica essas violências todas: são os infiéis, pecadores, dissidentes. E quem é o pecador para os religiosos, aquele que precisa ser respeitado ou, pela visão deles, ser resgatado, amado, auxiliado, orientado? Claro que não! Assim como no nosso e em qualquer tempo, o pecador é aquele que merece sofrer essas violências todas. Cumprindo dupla tarefa ao mesmo tempo, a violência sofrida pelo “infiel” é culpa dele mesmo e prova de como a vida “longe do senhor” pode ser ruim. Ora, não vemos nossos religiosos fazerem isso o tempo todo hoje?

Aliás, há os que questionam como podem os cristãos andarem de braços com o bolsonarismo e fazerem “arminha” com as mãos dentro das igrejas, defenderem esse governo em tudo imoral, violento e antipopular. Alguns dizem que haveria alguma incoerência nisso: não há! Insisto que as exceções são aqueles que professam a fé cristã e mantêm valores associados à justiça, à igualdade, ao respeito pela vida e pelo meio do qual fazemos parte. Como regra, o cristianismo, desde que se romanizou, tornou-se sinônimo de violência e sua história foi escrita com letras de sangue inocente. Isso nos remete ao segundo aspecto.

Num dado episódio da série, uma aia, que representa as que tentam se organizar e combater a ditadura religiosa, conversa com um comandante dissidente. Ela fala da certeza de que sua filha (tomada dela e adotada por uma família) não sofreria nenhuma violência, porque os valores de Gilead não permitiriam que fizessem mal a uma criança, ao que o comandante responde, mais ou menos assim: “Nunca a questão foi deus ou as crianças: sempre foi o poder!” E é bem isso: os líderes religiosos que ecoam as violências do nosso tempo, o moralismo, o combate à ciência, a propagação de mentiras, sabem muito bem manter o seu “rebanho” submisso, iludido com suas falsas promessas, alimentado em suas perversidades similares às dos pastores, não porque a sua mensagem seja de fé ou esperança em nada de bom ou coletivamente melhor: é o poder e a riqueza que estão em jogo. Foi sempre assim, desde Roma. É o discurso religioso adaptado às representações deformadas da realidade, respaldando com o recurso ao divino as aspirações mais egoístas e abjetas.

E não é um problema apenas dos cristãos: qualquer religião acaba assumindo o mesmo papel de fazer parte da estrutura de poder de sociedades baseadas na exploração do humano sobre o humano e estará sempre ao lado dos poderes estabelecidos, mesmo que sejam os mais nocivos e sanguinários. Para exemplos recentes, lembremos das igrejas cristãs e das ditaduras na América Latina; da relação entre cristãos e o nazifascismo; na guerra civil da Espanha e na ditadura de Franco, de Salazar etc.

Um aluno recentemente me falou: “mas se não tivéssemos a religião, o mundo seria só mentira e violência!” Besteira: a religião contribui para alimentar um mundo violento e mentiroso. Ela é parte disso e instrumento de violência, enganação, entorpecimento, estupidez. Um aparelho da nossa ordem perversa. Já estamos, de alguma maneira, em Gilead. Lá temos os contos da aia, aqui os cantos da morte dos Malafaia, Valdomiro, Macedo et caterva.

Mitos e verdades.

Cesar Mangolin.

Recebi a tarefa de escrever algo breve com esse título: mitos e verdades. As possibilidades são muitas, sem dúvida, portanto, optei por uma breve reflexão sobre os termos, trazendo algo para nossa realidade.

Mitos e verdades: os dois termos não devem ser pensados como antônimos.

O que chamamos de mito não é uma simples mentira, ou uma enganação. Seja atribuindo a seres e forças sobrenaturais a origem do mundo material e da vida, seja expressando por meio de relatos fantásticos as razões dos acontecimentos, a justificativa de uma hierarquia social qualquer, a possibilidade da boa colheita, a sorte na guerra, os fenômenos naturais, a razão de nascermos e morrermos e o que pode ocorrer depois etc., os mitos cumpriram e cumprem a tarefa de dar sentido a ações ou condições, contribuindo para que uma determinada forma de organização social se reproduza, no mínimo, de maneira resignada.

A verdade, da maneira mais simples, a compreendemos como aquilo que corresponde ou mais se aproxima da realidade objetiva, ou seja, o que é capaz de descrever algo do mundo de maneira precisa. Postular a objetividade é tarefa da ciência e da filosofia. Desde a antiguidade, com a tentativa racional e lógica de explicação das coisas, os mitos perderam o espaço antes ocupado, mas não desapareceram. Podemos pensar, analogamente, em mitos contemporâneos.

Os mitos carregam, portanto, um tanto de verdade. Nossos parentes mais distantes, nas primeiras comunidades humanas sedentarizadas, poderiam até atribuir aos deuses o milagre da germinação e a boa colheita, mas sabiam muito bem que não teriam o que comer sem a observação, o correto manejo, a quantidade certa de água e de outros nutrientes, ou seja, com muito trabalho e aprimorando constantemente o conhecimento sobre a agricultura. Do contrário, teriam de retornar ao nomadismo coletor e à caça.

A tarefa dos mitos, num tempo em que nosso conhecimento era mais reduzido, era dar às pessoas algum sentido, explicação, ainda que num plano fantástico. Jamais as coisas poderiam ficar no vazio da incerteza, da possibilidade de eventos casuais. Ao lado da nossa capacidade e necessidade, por vezes, pretensiosa, da explicação, o medo da vulnerabilidade e do imprevisível explicam a razão das construções míticas.

Com o avanço do conhecimento humano, os mitos tendem a ocultar condições, no geral, muito ruins, e a legitimar posições deploráveis: desigualdades sociais gritantes; disposições violentas e egoístas; preconceitos e discriminação; o conservadorismo mais cinzento… Encontramos essa disposição no nosso tempo em manifestações religiosas e outras práticas que ocupam o mesmo espaço, como as “religiões civis”, que mistificam e atribuem significados sobrenaturais a determinados símbolos e instituições, até mesmo a uma pessoa. Podemos pensar nas formas do culto à nação e as patriotadas típicas, como a exaltação da bandeira, dos hinos e da atribuição de tarefas heroicas e salvadoras a instituições como as forças armadas e congêneres. As incertezas do presente são aplacadas com dupla fantasia: de um lado, um inimigo à espreita e que deve ser combatido e destruído, ao qual são atribuídos todos os males e perigos; do outro, um futuro glorioso que será a recompensa pelas agruras e pelos sofrimentos do presente. Uma razão para suportar a vida agora, outra razão para continuar a viver. Isso não é expressão da esperança: é a forma pura da resignação e da covardia.

A ciência e a filosofia nos permitiram avanços gigantescos, inclusive para sabermos dos nossos limites e para afirmarmos que nem tudo podemos explicar e, nem por isso, é razoável apelar para algum argumento sem base material. Nossa capacidade de avançar para além das aparências e explicarmos o que as coisas são, inclusive as estruturas sociais, nos permite “desencantar” o mundo.

As incertezas quanto ao futuro imprevisível são racionais, tanto quanto a nossa capacidade de compreendermos as possibilidades abertas e as probabilidades. É na ação política organizada e planejada que reside a possibilidade de construirmos relações sociais que eliminem as desigualdades. A ciência e a filosofia são instrumentos para isso: não precisamos criar deuses, mitos e mais sacrifícios. A experiência recente do Brasil parece deixar isso muito claro.

Por aqui, tudo vai mais ou menos mal. Mas já basta.

Não parece que a felicidade seja algo que encontramos com facilidade pelas ruas nos nossos dias. Ainda que tenhamos pequenos momentos de alegria, causados por alguma boa notícia, eles são efêmeros e se dissipam no ar quase imediatamente. Por duas razões.

Primeiro, porque as boas notícias, quando ocorrem, têm sido apenas suspiros para aqueles que andam sufocados: uma possibilidade de emprego, um dinheirinho a mais, algo que era necessário para manter a vida com o mínimo de dignidade e foi conquistado, o amigo ou parente que escapou do genocídio da pandemia, da violência urbana, da violência do Estado… Notícias assim causam alguma alegria, sem dúvida. Mas rapidamente se tornam amargura ou resignação triste, exatamente por corresponderem apenas ao que deveríamos considerar o básico, o óbvio, mas que se tornou a exceção.

A segunda razão da nossa tristeza é coletiva: mesmo que uma ou outra notícia possa nos alegrar, parece impossível a felicidade no meio de tanta violência de todos os tipos. Não parece razoável que as pessoas estejam felizes e, ao mesmo tempo, convivam com os preconceitos propagados pelos quatro cantos; não parece razoável estar feliz fazendo ou assistindo aqueles que fazem a “arminha” com a mão; convivendo com a pregação constante do ódio, com a apologia da tortura, do assassinato, da ditadura; numa expressão mais breve, não parece possível ser feliz no retrocesso civilizacional pelo qual passamos.

E qual a saída para isso? Não há saída miraculosa. Aliás, por falar em milagre, não custa lembrar que as religiões no conjunto, mas, em particular, o cristianismo, têm se esmerado em demonstrar o quão distantes estão de qualquer coisa que lembre felicidade. De qualquer maneira, um ponto positivo desse tempo obscuro é que muitas instituições têm se mostrado exatamente como são: as igrejas, as forças armadas… Que não se perca essa memória. Como disse Vandré, vamos fazendo as contas para o dia que vai chegar!

A saída exige um novo ciclo, em direção à uma nova formação social, baseada em relações sociais de tipo novo. Somente isso é saída de fato. O resto é paliativo. Mas, já que é sempre necessário nesses tempos dizer o óbvio, os paliativos podem ser necessários para aplainar o caminho para soluções mais perenes.

Por ora, é preciso garantir o estancamento do nosso retrocesso civilizacional, numa ampla frente capaz de resgatar a dignidade da vida, materialmente e politicamente, ou seja, garantir alimento, moradia e alguma proteção àqueles que voltaram a engrossar a fila dos miseráveis, mas também combater decididamente o irracionalismo e a fascistização do país.

É possível deixarmos essa fase mais estúpida para trás. É possível não morrermos também neste ano, mais uma vez, como o “Sujeito de Sorte”, de Belchior.

Vídeo: Deus, na Ética de Epicuro

Segue o último vídeo desse semestre sobre as reflexões sobre a obra de Epicuro. O tema é Deus.

Desta vez, para fecharmos de maneira mais legal, reunimos alguns professores de filosofia e debatemos o tema breve mais longamente.

Espero que gostem e enviem sugestões de textos e temas para nossas próximas atividades.

Meu abraço

Mangolin.