O Conto da Aia e o canto dos Malafaia

Cesar Mangolin

Esclareçamos, primeiro, o título.

O sobrenome da figura abjeta aparece aqui somente para tornar o título uma rima infeliz. Mais nada. Na verdade, mais tudo: a figura representa o conjunto dos chamados “pastores” das igrejas, mas inclui também os padres católicos e afins. Com algumas exceções, essas figuras assumiram a linha de frente da representação do que, desde 2013, se tem chamado de “gente de bem”: aqueles que conciliam, com tranquilidade, caridade, pagamento de impostos (nem sempre, vide o “véio” da Havan), preconceito e chacina.

Já a série e o livro que são traduzidos como O conto da Aia, para quem não conhece, se passa em um país (chamado Gilead) que teria sido resultado de uma divisão dos EUA após uma revolução conservadora, organizada por um grupo religioso. É uma teocracia: tudo se explica e justifica a partir da Bílblia e de uma moral religiosa. As mulheres são submetidas aos homens e não podem nem mesmo ler e escrever. Há as esposas dos comandantes (que formam a elite do país), as tias (que controlam as aias), as Martas (escravas domésticas de serviços gerais), as esposas de trabalhadores, as que são obrigadas a se prostituírem, as que são mandadas aos campos de trabalho forçado e as aias. Estas últimas são estupradas mensalmente pelos comandantes, supostamente para gerarem filhos, com o auxílio das esposas. A sociedade em que viviam padecia da baixa taxa de natalidade, daí a “santa” ideia de utilizar mulheres aparentemente transgressoras das leis impostas como reprodutoras. Há um ritual religioso, baseado numa passagem bíblica que orienta um homem a “tomar” outra mulher para gerar um filho, visto que a “sua” era infértil. Tanto na Bíblia quanto na série, as mulheres são coisas submetidas aos interesses dos homens e essa é a única razão de existirem. As que engravidam têm os filhos arrancados após a amamentação, que se tornam filhos oficiais do comandante e da sua esposa. Qualquer ação contraceptiva, abortiva ou que possa afetar uma criança ou uma mulher grávida é considerada um crime grave.

Mas qual relação entre a série e os condutores dos rebanhos cristãos do Brasil? Muitas, mas destaco dois aspectos apenas, ficando a possibilidade de explorarmos mais essas similaridades em outras ocasiões.

Primeiro, e como expressão mais pura da Jesulândia, as relações sociais baseadas nos preceitos religiosos que, de um lado, dão um tom sacrossanto para todos os ambientes e, ao mesmo tempo, promovem uma violência bestial, direta e simbólica, constantemente. Na série, as pessoas se cumprimentam com saudações que fazem alusão ao divino (“abençoado dia”; “sob o olhar dele”), andam e se vestem de acordo com as normas religiosas e, ao mesmo tempo, passam por fileiras de pessoas enforcadas em praça pública, são vigiadas constantemente e observam espancamentos, assassinatos, sequestros etc. Mas a moral religiosa é a que justifica essas violências todas: são os infiéis, pecadores, dissidentes. E quem é o pecador para os religiosos, aquele que precisa ser respeitado ou, pela visão deles, ser resgatado, amado, auxiliado, orientado? Claro que não! Assim como no nosso e em qualquer tempo, o pecador é aquele que merece sofrer essas violências todas. Cumprindo dupla tarefa ao mesmo tempo, a violência sofrida pelo “infiel” é culpa dele mesmo e prova de como a vida “longe do senhor” pode ser ruim. Ora, não vemos nossos religiosos fazerem isso o tempo todo hoje?

Aliás, há os que questionam como podem os cristãos andarem de braços com o bolsonarismo e fazerem “arminha” com as mãos dentro das igrejas, defenderem esse governo em tudo imoral, violento e antipopular. Alguns dizem que haveria alguma incoerência nisso: não há! Insisto que as exceções são aqueles que professam a fé cristã e mantêm valores associados à justiça, à igualdade, ao respeito pela vida e pelo meio do qual fazemos parte. Como regra, o cristianismo, desde que se romanizou, tornou-se sinônimo de violência e sua história foi escrita com letras de sangue inocente. Isso nos remete ao segundo aspecto.

Num dado episódio da série, uma aia, que representa as que tentam se organizar e combater a ditadura religiosa, conversa com um comandante dissidente. Ela fala da certeza de que sua filha (tomada dela e adotada por uma família) não sofreria nenhuma violência, porque os valores de Gilead não permitiriam que fizessem mal a uma criança, ao que o comandante responde, mais ou menos assim: “Nunca a questão foi deus ou as crianças: sempre foi o poder!” E é bem isso: os líderes religiosos que ecoam as violências do nosso tempo, o moralismo, o combate à ciência, a propagação de mentiras, sabem muito bem manter o seu “rebanho” submisso, iludido com suas falsas promessas, alimentado em suas perversidades similares às dos pastores, não porque a sua mensagem seja de fé ou esperança em nada de bom ou coletivamente melhor: é o poder e a riqueza que estão em jogo. Foi sempre assim, desde Roma. É o discurso religioso adaptado às representações deformadas da realidade, respaldando com o recurso ao divino as aspirações mais egoístas e abjetas.

E não é um problema apenas dos cristãos: qualquer religião acaba assumindo o mesmo papel de fazer parte da estrutura de poder de sociedades baseadas na exploração do humano sobre o humano e estará sempre ao lado dos poderes estabelecidos, mesmo que sejam os mais nocivos e sanguinários. Para exemplos recentes, lembremos das igrejas cristãs e das ditaduras na América Latina; da relação entre cristãos e o nazifascismo; na guerra civil da Espanha e na ditadura de Franco, de Salazar etc.

Um aluno recentemente me falou: “mas se não tivéssemos a religião, o mundo seria só mentira e violência!” Besteira: a religião contribui para alimentar um mundo violento e mentiroso. Ela é parte disso e instrumento de violência, enganação, entorpecimento, estupidez. Um aparelho da nossa ordem perversa. Já estamos, de alguma maneira, em Gilead. Lá temos os contos da aia, aqui os cantos da morte dos Malafaia, Valdomiro, Macedo et caterva.

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