O Conto da Aia e o canto dos Malafaia

Cesar Mangolin

Esclareçamos, primeiro, o título.

O sobrenome da figura abjeta aparece aqui somente para tornar o título uma rima infeliz. Mais nada. Na verdade, mais tudo: a figura representa o conjunto dos chamados “pastores” das igrejas, mas inclui também os padres católicos e afins. Com algumas exceções, essas figuras assumiram a linha de frente da representação do que, desde 2013, se tem chamado de “gente de bem”: aqueles que conciliam, com tranquilidade, caridade, pagamento de impostos (nem sempre, vide o “véio” da Havan), preconceito e chacina.

Já a série e o livro que são traduzidos como O conto da Aia, para quem não conhece, se passa em um país (chamado Gilead) que teria sido resultado de uma divisão dos EUA após uma revolução conservadora, organizada por um grupo religioso. É uma teocracia: tudo se explica e justifica a partir da Bílblia e de uma moral religiosa. As mulheres são submetidas aos homens e não podem nem mesmo ler e escrever. Há as esposas dos comandantes (que formam a elite do país), as tias (que controlam as aias), as Martas (escravas domésticas de serviços gerais), as esposas de trabalhadores, as que são obrigadas a se prostituírem, as que são mandadas aos campos de trabalho forçado e as aias. Estas últimas são estupradas mensalmente pelos comandantes, supostamente para gerarem filhos, com o auxílio das esposas. A sociedade em que viviam padecia da baixa taxa de natalidade, daí a “santa” ideia de utilizar mulheres aparentemente transgressoras das leis impostas como reprodutoras. Há um ritual religioso, baseado numa passagem bíblica que orienta um homem a “tomar” outra mulher para gerar um filho, visto que a “sua” era infértil. Tanto na Bíblia quanto na série, as mulheres são coisas submetidas aos interesses dos homens e essa é a única razão de existirem. As que engravidam têm os filhos arrancados após a amamentação, que se tornam filhos oficiais do comandante e da sua esposa. Qualquer ação contraceptiva, abortiva ou que possa afetar uma criança ou uma mulher grávida é considerada um crime grave.

Mas qual relação entre a série e os condutores dos rebanhos cristãos do Brasil? Muitas, mas destaco dois aspectos apenas, ficando a possibilidade de explorarmos mais essas similaridades em outras ocasiões.

Primeiro, e como expressão mais pura da Jesulândia, as relações sociais baseadas nos preceitos religiosos que, de um lado, dão um tom sacrossanto para todos os ambientes e, ao mesmo tempo, promovem uma violência bestial, direta e simbólica, constantemente. Na série, as pessoas se cumprimentam com saudações que fazem alusão ao divino (“abençoado dia”; “sob o olhar dele”), andam e se vestem de acordo com as normas religiosas e, ao mesmo tempo, passam por fileiras de pessoas enforcadas em praça pública, são vigiadas constantemente e observam espancamentos, assassinatos, sequestros etc. Mas a moral religiosa é a que justifica essas violências todas: são os infiéis, pecadores, dissidentes. E quem é o pecador para os religiosos, aquele que precisa ser respeitado ou, pela visão deles, ser resgatado, amado, auxiliado, orientado? Claro que não! Assim como no nosso e em qualquer tempo, o pecador é aquele que merece sofrer essas violências todas. Cumprindo dupla tarefa ao mesmo tempo, a violência sofrida pelo “infiel” é culpa dele mesmo e prova de como a vida “longe do senhor” pode ser ruim. Ora, não vemos nossos religiosos fazerem isso o tempo todo hoje?

Aliás, há os que questionam como podem os cristãos andarem de braços com o bolsonarismo e fazerem “arminha” com as mãos dentro das igrejas, defenderem esse governo em tudo imoral, violento e antipopular. Alguns dizem que haveria alguma incoerência nisso: não há! Insisto que as exceções são aqueles que professam a fé cristã e mantêm valores associados à justiça, à igualdade, ao respeito pela vida e pelo meio do qual fazemos parte. Como regra, o cristianismo, desde que se romanizou, tornou-se sinônimo de violência e sua história foi escrita com letras de sangue inocente. Isso nos remete ao segundo aspecto.

Num dado episódio da série, uma aia, que representa as que tentam se organizar e combater a ditadura religiosa, conversa com um comandante dissidente. Ela fala da certeza de que sua filha (tomada dela e adotada por uma família) não sofreria nenhuma violência, porque os valores de Gilead não permitiriam que fizessem mal a uma criança, ao que o comandante responde, mais ou menos assim: “Nunca a questão foi deus ou as crianças: sempre foi o poder!” E é bem isso: os líderes religiosos que ecoam as violências do nosso tempo, o moralismo, o combate à ciência, a propagação de mentiras, sabem muito bem manter o seu “rebanho” submisso, iludido com suas falsas promessas, alimentado em suas perversidades similares às dos pastores, não porque a sua mensagem seja de fé ou esperança em nada de bom ou coletivamente melhor: é o poder e a riqueza que estão em jogo. Foi sempre assim, desde Roma. É o discurso religioso adaptado às representações deformadas da realidade, respaldando com o recurso ao divino as aspirações mais egoístas e abjetas.

E não é um problema apenas dos cristãos: qualquer religião acaba assumindo o mesmo papel de fazer parte da estrutura de poder de sociedades baseadas na exploração do humano sobre o humano e estará sempre ao lado dos poderes estabelecidos, mesmo que sejam os mais nocivos e sanguinários. Para exemplos recentes, lembremos das igrejas cristãs e das ditaduras na América Latina; da relação entre cristãos e o nazifascismo; na guerra civil da Espanha e na ditadura de Franco, de Salazar etc.

Um aluno recentemente me falou: “mas se não tivéssemos a religião, o mundo seria só mentira e violência!” Besteira: a religião contribui para alimentar um mundo violento e mentiroso. Ela é parte disso e instrumento de violência, enganação, entorpecimento, estupidez. Um aparelho da nossa ordem perversa. Já estamos, de alguma maneira, em Gilead. Lá temos os contos da aia, aqui os cantos da morte dos Malafaia, Valdomiro, Macedo et caterva.

Por aqui, tudo vai mais ou menos mal. Mas já basta.

Não parece que a felicidade seja algo que encontramos com facilidade pelas ruas nos nossos dias. Ainda que tenhamos pequenos momentos de alegria, causados por alguma boa notícia, eles são efêmeros e se dissipam no ar quase imediatamente. Por duas razões.

Primeiro, porque as boas notícias, quando ocorrem, têm sido apenas suspiros para aqueles que andam sufocados: uma possibilidade de emprego, um dinheirinho a mais, algo que era necessário para manter a vida com o mínimo de dignidade e foi conquistado, o amigo ou parente que escapou do genocídio da pandemia, da violência urbana, da violência do Estado… Notícias assim causam alguma alegria, sem dúvida. Mas rapidamente se tornam amargura ou resignação triste, exatamente por corresponderem apenas ao que deveríamos considerar o básico, o óbvio, mas que se tornou a exceção.

A segunda razão da nossa tristeza é coletiva: mesmo que uma ou outra notícia possa nos alegrar, parece impossível a felicidade no meio de tanta violência de todos os tipos. Não parece razoável que as pessoas estejam felizes e, ao mesmo tempo, convivam com os preconceitos propagados pelos quatro cantos; não parece razoável estar feliz fazendo ou assistindo aqueles que fazem a “arminha” com a mão; convivendo com a pregação constante do ódio, com a apologia da tortura, do assassinato, da ditadura; numa expressão mais breve, não parece possível ser feliz no retrocesso civilizacional pelo qual passamos.

E qual a saída para isso? Não há saída miraculosa. Aliás, por falar em milagre, não custa lembrar que as religiões no conjunto, mas, em particular, o cristianismo, têm se esmerado em demonstrar o quão distantes estão de qualquer coisa que lembre felicidade. De qualquer maneira, um ponto positivo desse tempo obscuro é que muitas instituições têm se mostrado exatamente como são: as igrejas, as forças armadas… Que não se perca essa memória. Como disse Vandré, vamos fazendo as contas para o dia que vai chegar!

A saída exige um novo ciclo, em direção à uma nova formação social, baseada em relações sociais de tipo novo. Somente isso é saída de fato. O resto é paliativo. Mas, já que é sempre necessário nesses tempos dizer o óbvio, os paliativos podem ser necessários para aplainar o caminho para soluções mais perenes.

Por ora, é preciso garantir o estancamento do nosso retrocesso civilizacional, numa ampla frente capaz de resgatar a dignidade da vida, materialmente e politicamente, ou seja, garantir alimento, moradia e alguma proteção àqueles que voltaram a engrossar a fila dos miseráveis, mas também combater decididamente o irracionalismo e a fascistização do país.

É possível deixarmos essa fase mais estúpida para trás. É possível não morrermos também neste ano, mais uma vez, como o “Sujeito de Sorte”, de Belchior.

A indigência intelectual e moral dos golpistas

Cesar Mangolin

Esclareço os termos antes de tudo.

Entendo o processo que levou à derrubada da presidenta eleita pelo voto direto como um GOLPE DE ESTADO. Portanto, chamo de golpistas tanto os que articularam diretamente o golpe, quanto os que o apoiaram e festejaram. Mas a estes últimos me refiro preferencialmente aqui.

A indigência refere-se a um estado miserável, vem da palavra latina que também quer dizer “carência”, no sentido de que faltam elementos básicos e fundamentais. Portanto, a indigência intelectual é um estado de miséria e carência absoluta de fundamentos teóricos e capacidade de análise. A indigência moral é marcada pela ausência de princípios, a miséria que se expressa pelo comportamento, o que minha mãe chamaria no popular de falta de vergonha na cara mesmo.

Pois bem. Esclareço brevemente as duas características nesse processo do golpe.

Os que apoiaram e festejaram o golpe são indigentes intelectuais porque é notória a incapacidade de estabelecer conexões com interesses diversos envolvidos no processo. Mas mais que compreender o que está por trás do golpe e o explica, essa gente não é capaz de compreender a gravidade do momento em que vivemos, a seriedade e as consequências mais ou menos duradouras do retrocesso que demos início, tanto na vida política do país, quanto nas condições de vida dos trabalhadores, o que envolve também o grosso dos setores médios batedores de panelas.

Mas não é por falta de capacidade de análise que festejam o golpe… É infantil e ingênua a versão corrente de que a suposta burrice seria a explicação para que tantos trabalhadores apoiassem  golpe… Que, no geral, são incapazes de fazer uma análise mais ampla, não há duvida. Mas isso também ocorre com boa parte dos que são contra o golpe. Quero dizer com isso que precisamos romper com a ideia de que é a falta de conhecimento a explicação para tudo… Por detrás dessa argumentação está sempre a ideia de que a ilustração por si só garantiria uma sociedade mais justa e lança preferencialmente aos que não tiveram acesso à escolarização formal a culpa de tudo. Não esqueçam que esse é um argumento amplamente utilizado pelos golpistas para atacar os trabalhadores mais empobrecidos e lhes responsabilizar por nossas misérias. Ora, que os iluministas tenham vivido desse tipo de ilusão e que muitos persistam nessa perspectiva, é fato. Principalmente aqueles envolvidos com processos educativos. Mas não é razoável: possuímos exemplos suficientes desde o século XVIII que nos permitem considerar esse tipo de explicação da realidade uma maneira de simplificar e, na verdade, de fugir da explicação e da tentativa de compreensão da realidade objetiva. Fora isso, é bom lembrar que boa parte dos golpistas, verdadeiros indigentes intelectuais e morais, são também formados nas universidades, são mestres, são doutores…

Enfim, afirmo que os que apoiam o golpe não sofrem apenas de uma dificuldade de compreensão da realidade: insisto que esses limites estão postos também para boa parte dos que lutam contra o golpe. O que chamo aqui de indigência intelectual dos golpistas está ligada e subordinada à sua indigência moral. Esse é o fator preponderante.

E compreendam que não estou falando de nada fora da política, no sentido mais amplo do termo. Não submeto a política à moral, mas o contrário: ainda que os golpistas compreendam a si mesmos apenas com indivíduos singulares e atomizados, como é próprio da ideologia do nosso tempo, esse efeito de indigência moral é antes de tudo coletivo e organizado por práticas políticas bem precisas.

Vou tentar fazer uma síntese breve disso: o golpista é indigente moral porque sabe (e já faz tempo) que o processo não tem nenhuma relação com a luta contra a corrupção. Ele saiu às ruas com a camisa da CBF, tirou fotos com a polícia sorridente e gritou “somos todos Cunha”!!!!  O golpista apoiou a perseguição a lideranças do PT porque eram do PT, porque odeiam qualquer coisa que cheire a trabalhador, ainda que eles mesmos sejam trabalhadores. Odeiam a melhoria das condições de vida dos mais pobres porque isso lhes ameaça os canais tradicionais de manutenção como setor médio; mas odeiam também porque perdem aquela parcela da população que pode lhes servir em troca de um prato de comida ou de qualquer punhado de moedas. Lembram do escândalo das madames quando direitos trabalhistas básicos passaram a vigorar para o trabalho  doméstico? Os golpistas são indigentes morais porque são mesquinhos, egoístas. Eles praticam e demandam violências das mais diversas. O pacote vem completo: o desprezo pelos mais vulneráveis socialmente é refletido pelo desprezo aos trabalhadores,   às causas das mulheres, pela homofobia, o racismo, os mínimos direitos de crianças e adolescentes etc.. Em poucas palavras: eles optam por ficar ao lado do que há de mais podre, daqueles que secularmente dilapidam as riquezas nacionais e esfolam os trabalhadores brasileiros, ficam ao lado da corrupção, da violência em todos os sentidos e SABEM MUITO BEM QUE FAZEM ISSO!!! 

E compreender isso, romper com a ideia de que o problema é apenas de “burrice” ou ignorância, auxiliará aos que combatem o golpe a conhecer melhor seus inimigos e melhor definir o campo da luta que segue.

Não há inocentes!

 

O governo caiu por seus méritos: compreender o golpe e organizar a luta.

Cesar Mangolin

Uso este texto para poder melhor expressar uma posição inicial que me parece dever ser a dos que pretendem dar prosseguimento ao debate e à organização para a luta nessa nova conjuntura. É um texto sucinto, escrito para dialogar com militantes da esquerda, não com “coxinhas” histéricos e nem com o esquerdismo infantil, a irrelevante esquerdinha do “nem, nem”, do “é tudo igual” e do “voto nulo”. Penso que os militantes progressistas, democratas e de esquerda, enfim, todos que compreendem a derrubada da presidente Dilma como um golpe e um atentado perigoso à nossa frágil democracia devem pautar suas análises e a construção da tática para o momento a partir de uma constatação importante e fundamental que adianto aqui: o governo foi derrubado por seus méritos.

É importante pensar e expressar essa obviedade porque tivemos três grandes posicionamentos diante do evento. 1) o governo caiu porque é corrupto; 2) o governo caiu porque fez alianças com a direita; 3)  Michel Temer foi o vice-presidente eleito na chapa do PT, portanto, a “culpa” é do PT mesmo.

A primeira posição é frouxa, como bem sabemos, e não merece que nos estendamos nela. Não porque corrupção não seja um problema! É um grave problema, sem dúvida, mas foi apenas o cavalo de batalha e jamais a questão central em todo o processo. É necessário para qualquer um ser muito estúpido ou muito safado para continuar a afirmar algo assim, transcorrido o processo. Não há, de maneira alguma, mais espaço para esse tipo de argumentação.

As posições dois e três estão articuladas e são, ambas, equivocadas. A conjuntura de crise das políticas neoliberais do final da década de 1990 e começo dos 2000 permitiu uma série de governos progressistas e de esquerda e centro-esquerda por toda a América Latina e também na Europa. Mas essa possibilidade aberta pela crise generalizada deveria ser contingenciada pelas conjunturas internas de cada país, ou seja,  as possibilidades dessas experiências serem mais ou menos avançadas dependeu, como sempre, do nível de acirramento das lutas de classe dentro de cada país. Isso explica a capacidade de tomar medidas mais ou menos progressistas e até mesmo o caminho tomado para a chegada ao governo e o espaço real de manobra e movimento: as experiências mais amparadas em movimentos populares mobilizados e com histórico recente de grandes lutas nacionais pode explicar, por exemplo, a maior radicalidade das experiências da Bolívia, do Equador e da Venezuela. Assim como um menor acirramento interno das lutas de classe podem explicar a necessidade de dar largo peso ao processo institucional e buscar alianças para além do campo popular e de esquerda para viabilizar vitórias eleitorais. Isso não ocorreu somente no Brasil, mas também na Argentina, no Chile, no Paraguai, no Uruguai, na Nicarágua etc..Após um breve ciclo de crescimento econômico, mas principalmente, de desenvolvimento social, todas essas experiências (as mais e as menos avançadas) passaram a sofrer revezes com a persistência da crise internacional do sistema capitalista. Nuns casos, eleitorais (Chile – que retornou depois-, Argentina, vários países da Europa, por exemplo…), noutros, diante da impossibilidade ou incapacidade de vitória eleitoral dos setores reacionários, o caminho foi o golpe, como ocorreu no Paraguai, como é tentado na Venezuela e, agora, no Brasil.

É óbvio que todos lembram da “Carta aos Brasileiros” de Lula e do PT na campanha de 2002. Lembram também que foi uma ampla e heterogênea frente de partidos e movimentos populares a responsável por sua eleição, cuja vice-presidência era ocupada por um empresário do extinto Partido Liberal… A composição do governo refletiu essa frente, sem dúvida. Mas provavelmente não haveria a vitória eleitoral não fosse essa montagem, assim como não ocorreria nas eleições sucessivas. Dizer agora que a sequência de governos (os dois de Lula, o de Dilma) poderia ter criado bases sociais para saídas mais avançadas denota apenas uma visão paternalista e ilusória com relação ao Estado burguês (a mesma que foi capaz de cooptar movimentos e lideranças populares) e a incapacidade que partidos e movimentos mais avançados tiveram de inserção e organização, isso sim, fundamental para que essas saídas ocorressem. É da capacidade de luta, de mobilização e de organização dos trabalhadores que depende qualquer saída mais avançada e até revolucionária, não da máquina do Estado…

Mas essas ilusões com o Estado burguês não significam, de outro lado, que governos com o perfil do ciclo petista não eram fundamentais! Os trabalhadores conquistaram durante esses governos condições e “direitos” que secularmente lhes foram negados. Ainda que imbricados nas contradições e necessidades de ceder ao grande capital e, ao mesmo tempo, realizar avanços sociais, ninguém pode negar que as condições de vida dos trabalhadores por todo o país foram elevadas positivamente e que jamais se fez tanto pela redução ou eliminação da miséria e das desigualdades gritantes.

Michel Temer, político tradicional do “centro” pantanoso que é o PMDB, que tende para qualquer lado onde possa ocupar mais espaço, era parte de um governo com esse perfil: eleito por uma frente heterogênea de partidos, mas com compromissos sociais claros, com compromissos com determinadas frações do capital também claros. Vejam: determinadas frações do capital que eram atendidas prioritariamente nos seus interesses porque faziam parte do projeto desenvolvimentista que estava na base desse governo e era seu programa. As demais frações do grande capital participavam, sem dúvida, secundariamente. É necessário compreender as contradições internas da própria burguesia, porque é uma parte dela e não seu conjunto quem está por detrás do golpe. Não esqueçam que uma parcela da burguesia está, inclusive, na cadeia: as grandes empresas responsáveis pela construção pesada, pela construção civil, pela indústria naval, de segurança territorial etc.. Aliás, exatamente aquela fração privilegiada pelo programa desse ciclo de governos. Enfim, isso tudo pra dizer que Michel Temer não foi eleito para fazer parte de um golpe de Estado: foi eleito, dentro das regras democráticas e da ordem constitucional para ser o vice-presidente de um governo que tinha programa já aplicado e em andamento. Não é possível ver gente de esquerda fazendo esse discurso agora de que a “culpa” é do PT mesmo por isso… O golpe ocorreria, com ele, sem ele… Personalizar o golpe, assim como o próprio PT estava fazendo, dizendo que é uma armação de Temer e uma vingança de Eduardo Cunha é reduzir o problema a uma intriga palaciana e perder sua dimensão política e de classe.

Eu defendi desde as manifestações de junho de 2013 (que foram tomadas pela pequena burguesia por todo o país) que havia uma articulação diferente da direita em andamento, que havia a ameaça de golpe. Com o início do processo eleitoral em 2014, ficou bastante claro que não teríamos ali uma eleição qualquer: tínhamos dois projetos de dentro da ordem burguesa, sem dúvida, mas dois projetos em disputa, sendo que o que vinha da direita ganhava força, o que ficou expresso na campanha (mais violenta que de costume) e na votação final. Era necessário a partir dali defender esse governo, não por sermos “governistas” acríticos, mas porque o que viria em seu lugar significaria um forte retrocesso.  Enfim, não é necessário e estenderia demais esse texto mencionar todos os grandes lances do processo, mas o fato é que tivemos golpe que precisa ser compreendido para além dessas três posições superficiais mencionadas acima.

E repito, para poder concluir, que esse governo foi derrubado por seus méritos, não por outro motivo. É necessário ir para além das facilidades da análise para compreender sua real dimensão e sentido. É ser rasteiro e leviano afirmar que era um serviçal governo de direita que perdeu a importância e foi descartado (como tem feito a “esquerdinha” burra). Foi um golpe dado contra a nossa frágil democracia, que favorece a organização e ação popular, um golpe dado contra as conquistas sociais, um golpe dado contra os avanços da luta contra o racismo, um golpe dado contra os avanços do movimento feminista, na luta contra a homofobia. Fundamentalmente, um golpe violento contra os cantões do Brasil, um golpe que vai interromper mudanças fundamentais que trouxeram condições mínimas de dignidade para uma parcela considerável da população brasileira. Um golpe que pretende recriar no Brasil as condições para a acentuação da exploração dos trabalhadores e das nossas riquezas  pelo grande capital estrangeiro.

Claro que ocorreram vacilos, erros etc.. Óbvio que um pouco do conjunto daqueles três argumentos precisa ser tomado para entender essa derrota histórica. Mas atribuir a “culpa” do golpe a quem sofreu o golpe é o mesmo que atribuir à vítima de violência a responsabilidade pela violência sofrida, como fazemos com as mulheres vítimas de violência sexual, por exemplo, quando afirmamos que foram atacadas porque estavam vestidas de tal maneira, porque estavam na rua tarde da noite e coisas do tipo.

Tampouco me parece que nosso momento é o de encontrar culpados. Ao contrário, precisamos 1) compreender as razões desse golpe, seu caráter de classe e seu programa (isso está delineado acima…); 2)  saber como estão (concreta e objetivamente) as forças que se movimentam contra o golpe; 3) articular por todos os canais a reação organizada e a luta de resistência e ofensiva para derrotar o golpe e retornarmos numa posição qualitativamente mais avançada.

Penso que esse pontos (expostos de maneira apenas geral aqui), podem permitir um bom debate tendo em vista a ação.

 

A récua é do setor médio, majoritariamente branca e de direita.

Cesar Mangolin

A afirmação que dá título ao texto saiu no The Guardian, jornal britânico sobre o qual não pesa nenhuma suspeita de ser simpático aos comunistas, que estampou a manchete de uma manifestação de “direita e de gente branca”, o que os levou à compreensão dos estratos que participavam das manifestações de domingo. Além disso, observaram, no final da matéria, que os partidos ligados aos trabalhadores fizeram uma manifestação menor na última sexta, desvencilhando portanto os trabalhadores e suas organizações dessa papagaiada de ontem.

Por detrás dos discursos de insatisfação com a vida devido à crise que bate em nossas portas, as manifestações que ocorreram no domingo demonstraram apenas o que já temos tratado aqui neste blog desde meados de 2013…

Ontem pudemos perceber qual é o componente básico desses protestos e suas principais e esdrúxulas palavras de ordem. Em meio a suásticas nazistas e camisas da seleção brasileira, um público majoritariamente branco e de classe média pisou nas ruas das grandes cidades brasileiras, pelas quais passam geralmente apenas dentro de automóveis com vidros bem fechados.

A caracterização merece ser pensada: é a classe média; é uma elite branca; é de direita.

Não vou gastar tanta energia com o item “elite branca” (isso vale outro texto somente para o tema), apesar de ser o mais polêmico. Apenas vale insistir que não se trata de procurar negros nos protestos, embora fossem poucos mesmo. A passeata era nas ruas e quem quisesse poderia participar. Há, inclusive, uma camada pequeno burguesa negra no Brasil. Não é numericamente que este componente está ausente, mas culturalmente e o que significa historicamente: aqueles aos quais foram relegadas as posições menos remuneradas na divisão do trabalho. Mas ainda vale ressaltar a admiração dos ingleses do The Guardian em não encontrar (no caso deles, numericamente mesmo) os negros (maioria da nossa população) em número expressivo nas passeatas.

Os cartazes expressaram a combinação das três características, embora não estivessem sempre escritos em bom português e alguns deles escritos em inglês (!), visto que faz parte da récua abanar as orelhas aos seus senhores.

Tentemos entender os setores que compuseram esses protestos então.

A crítica aos governos petistas, que fazemos no sentido de avançarmos em medidas progressistas para os trabalhadores, passa necessariamente pelo reconhecimento de suas ambiguidades. Fundamentalmente, é preciso jamais esquecer que são governos da ordem burguesa, portanto, é óbvio que operam no sentido de manutenção dessa ordem e no atendimento prioritário dos interesses das frações do capital. Mas esses governos operaram uma mudança na maneira de atender a esses interesses: num momento de grave crise, que marcou o segundo mandato de FHC, Lula assumiu a presidência com o compromisso de dar continuidade a essa ordem, mas também com a possibilidade, aberta pela crise e pela insatisfação popular, de tomar medidas que mudariam substancialmente a vida dos trabalhadores e da população mais empobrecida.

Aumento real do salário mínimo e dos salários em geral; redução drástica do desemprego; programas sociais de renda mínima casados com o incentivo ao pequeno produtor e à formação profissional para retirar da miséria milhões de brasileiros; redução da fome e da população em situação de miséria; ampliação do acesso à educação formal; ampliação do acesso a casa própria para todas as faixas de renda… Enfim, medidas que possuem efeitos contraditórios, não há dúvida, mas que modificaram a vida de todos os brasileiros. Todos.

Ninguém pode afirmar que vive hoje pior do que vivia em 2002. Essa mudança tem relação com a ação desses governos. Os setores médios não percebem isso evidentemente: acreditam que o que melhorou foi apenas fruto do seu mérito pessoal…

O fato mesmo é que, independentemente das contradições que ainda vivemos e da ordem burguesa, os que se opõem a este governo o fazem por duas razões: criticam o governo por seus méritos, não por seus defeitos; expõem um ranço conservador que despreza qualquer organização que carregue o nome de “trabalhador” consigo…

As frações do grande capital se ajustaram e algumas (mais que outras) encontraram maneiras de ampliar seus lucros. A estabilidade do país e sua cada vez mais respeitada posição na cena internacional facilitou isso.

Mas a chegada da crise e a disposição histérica da récua cor-de-rosa em pedir a cabeça da presidente faz acender, no entanto, uma nova luzinha para essas frações, em particular para a do grande capital financeiro. A possibilidade de quebrar, via golpe de qualquer tipo, o ciclo petista e colocar em seu lugar um novo ciclo de gente e partidos mais fiéis aos seus interesses aparece como um negócio interessante. A mídia, que se vê diante de uma disposição do governo de estabelecer sua regulação, embarcou com tudo no mesmo projeto. Governos, como o dos EUA, incomodados com as relações brasileiras com o novo bloco formado pela Rússia e China, pelo apoio à Venezuela, à Cuba e a experiências progressistas ocorridas no cone sul, como no Uruguai, vêm também com otimismo a possibilidade do golpe.

O resultado é essa gente toda nas ruas, estimuladas pela grande mídia e por campanhas caras, pagas por alguém… Como já disse aqui, a histeria coletiva faz essa massa nem saber exatamente o que pedem, nem as consequências desse processo.

Os setores médios sempre estiveram ali à direita, fazendo o papel que lhe foi atribuído pelas elites: no suicídio de Vargas, na derrubada de Jango…. Estiveram também no apoio do fascismo na Itália em 1922, do nazismo na Alemanha em 1933… Em todos os casos foram largamente prejudicados: são marionetes, base social de manobra para os interesses do grande capital. Não os que se beneficiariam do resultado.

Têm disposições à direita. Repito aqui algo já dito em outros textos. O problema é que os setores médios possuem um sonho e um medo: o sonho é do aburguesamento individual; o medo é o da proletarização. Tudo o que ocorre, esse insano grupo de pessoas acredita ser apenas e tão somente produto do seu mérito pessoal, não podendo reconhecer, portanto, que as mudanças que ocorreram nos últimos anos no Brasil melhoraram também sua vida… Mas o sonho de ser burguês e o medo de se proletarizar envolve o que é individual e o que é coletivo… Enriquecer deve ser algo individual, porque os ideais de “sucesso” gestados na ordem capitalista não passam apenas pela aquisição de bens materiais: passam necessariamente por algum grau de distinção, para que a riqueza seja ostentada e reconhecida. A proletarização é coletiva, e nesse caso não significa empobrecimento. Na cabeça dos setores médios, o acesso de camadas miseráveis da população a condições mais razoáveis de vida, o acesso a espaços que lhes foram sempre bloqueados, a determinadas carreiras, determinados serviços, enfim, a proximidade dos “pobres” que já não vão aparecer tão pobres assim joga areia no seu projeto individual, amplia a concorrência, faz com que se percam os canais tradicionais de sua manutenção e justificação em determinados postos e carreiras… Por isso reagem com tanta raiva aos programas sociais, com tanta raiva contra as cotas, com tanta raiva contra governos como os dos últimos 12 anos…

É esse amálgama de interesses confluentes por parte de setores do grande capital (fração financeira, empresas da grande mídia, interesses imperialistas, em particular, dos EUA) e dos difusos (e confusos) interesses dos setores médios que dá forma aos que pedem o fim do governo Dilma.

Conseguir ou não o que intentam vai depender dos desdobramentos do final de semana: é o fôlego das organizações dos trabalhadores de um lado e o dos coxinhas histéricos de ontem quem dará a tônica do processo. Eles têm a-poios poderosos, sem dúvida. Mas acreditamos que as organizações progressistas e de esquerda saberão tomar posição e aglutinar mais forças para o combate. Quem define o resultado disso, quem define se avançamos ou retrocedemos é, sem dúvida, a luta de classes.

Obs.: “récua” é um coletivo de jumento… Também pode ser, no sentido figurado, “corja”. Mas eu prefiro o primeiro…

“Nós limpamos a bunda da sociedade IV”: os professores, a meritocracia e a ideologia do mérito pessoal.

Cesar Mangolin

Este é o quarto e último texto da série voltada à reflexão de professores e demais envolvidos com a educação formal. Começamos pela crítica ao papel direto dos professores e da escola como agentes da reprodução da ordem, passamos pelo tema da violência (e da violência simbólica da escola) e, no terceiro texto, fizemos uma reflexão sobre a relação entre conhecimento e transformação social.

Como anunciei no final daquele último texto, este que completa a série tem por objetivo discutir um tema decorrente do anterior: a meritocracia e a ideologia do mérito pessoal, muito presente no discurso de professores e estudantes e que aumenta na medida em que a educação formal se volta cada vez mais ao chamado “mercado de trabalho” e à tentativa de justificar, pelo empenho pessoal, as desigualdades sociais.

Peço a paciência para a extensão e a necessidade de argumentar melhor aqui, tentando sempre manter a linguagem apropriada de um blog e não de um artigo científico. Aos que chegarem ao final, indico (através dos links) dois textos mais amplos sobre temas aqui tratados.

O empenho pessoal em determinadas tarefas, ou na busca de certos objetivos, cumpre um papel fundamental. No geral, uma dada dose de esforço, disciplina e planejamento é requisito inquestionável para que sejam alcançados os resultados propostos. Disso não há dúvida. De resto, a casualidade costuma cumprir também um papel importante.

O problema começa quando pretendemos afirmar que tudo depende apenas do esforço e da dedicação pessoal, como anunciam aos quatro ventos os manuais de autoajuda, os apologetas da ordem burguesa, a maioria dos professores e os desinformados.

Somente em igualdade de condições é possível exigir ou explicar pelo empenho pessoal o resultado de qualquer coisa. É exatamente aí que a ideologia jurídica (não a estrutura jurídico-política) cumpre seu papel nefasto, ao apresentar todos os que vivem em dado país ou região como uma reunião de indivíduos (cidadãos!), livres (juridicamente) e iguais (formalmente).

Estes três elementos formam a tríade que serve de base à ideologia do mérito pessoal. Foi o pensamento liberal quem deu forma a essa ideologia, que marca todas as formações sociais capitalistas e auxilia sua reprodução.

Em outros modos de produção divididos em classes (como, por exemplo, o escravismo e o feudalismo), havia estatutos diferenciados para os desiguais, ou seja, tratavam desigualmente os desiguais: os que trabalham e os que não trabalham e vivem da exploração do trabalho alheio. Esse tratamento desigual demarcava ao mesmo tempo as classes sociais fundamentais daquelas formações sociais e escancarava as relações de exploração do homem pelo homem.

Nas formações sociais capitalistas, o trabalho assalariado e a extração da mais-valia nos setores produtivos e a exploração do trabalho no demais setores exigem o trabalhador “livre” juridicamente. Somente livre e expropriado dos meios de produção é que o trabalhador pode se apresentar voluntariamente ao capitalista para vender sua capacidade de trabalho em troca de um tanto de equivalente universal (dinheiro), com o qual pode comprar os gêneros necessários para manter e reproduzir a vida.

Assentado em dois pilares (o contrato e a propriedade privada), o direito burguês vai tratar igualmente os desiguais e, para tanto, a desigualdade não pode aparecer como ocorre concretamente na forma das classes sociais. Voltando à tríade que serve de base à ideologia do mérito pessoal anunciada acima, a percepção das classes é escondida na figura da população, como soma de indivíduos portadores de direitos individuais, que são iguais formalmente, apenas perante a lei (não se trata de igualdade socioeconômica) e livres juridicamente. Livres e iguais perante a lei para fazer de suas vidas o que bem quiserem, ou seja, nasce daí a ideia de que nessas condições vivemos em uma sociedade aberta, que permite a mobilidade social, uma vez que todos são “sujeitos” da própria vida.

Vivendo as relações concretas como exploradores e explorados, portanto, como classes distintas, a ideologia deturpa a realidade e cumpre o papel de dar sentido ao vivido num plano em que as relações são apreendidas como a ação de indivíduos na luta pelos ideais de sucesso construídos socialmente, que passam, necessariamente, pela aquisição de bens materiais e algum grau de distinção individual. A vida vai aparecer como uma grande diversidade de relações similares às relações mercantis (fonte das ideologias próprias das formações capitalistas, nas quais indivíduos iguais, livres e proprietários privados de algo estabelecem trocas), que são assimiladas e traduzidas para um discurso específico por diversas instituições (os aparelhos ideológicos) que cercam por todos os lados a existência e lhe dá sentido: o próprio Estado, as igrejas, os meios de comunicação, o núcleo familiar, a escola…

Embora a vida seja assim representada e ganha sentido, as relações sociais concretas da ordem capitalista não passam por nenhuma mutação: continua a ser um modo de produção baseado na exploração do homem pelo homem, portanto, dividido em classes sociais distintas e gerador, por suas próprias contradições, de inumeráveis misérias pelo mundo afora.

É a ideologia, portanto, não as relações sociais concretas, quem dá origem à ideologia do mérito pessoal e à defesa da meritocracia, elementos poderosos, como já dito, para a reprodução da ordem capitalista. O poder da ideologia do mérito pessoal não é o de fornecer o argumento que justifica a situação dos que alcançam os tais ideais de sucesso. O poder dessa ideologia é o de fazer com que os que não o alcançam atribuam a si mesmos ou a questões secundárias os motivos de seu fracasso, gerando resignação.

O argumento em favor da meritocracia vai pelo mesmo caminho: serve para justificar, pelo suposto empenho ou qualidades individuais, a manutenção de determinados setores em posições já consolidadas: as classes em seus mesmos lugares, os setores médios em seus espaços próprios…

A mobilidade social apenas ocorre como exceção, embora seja anunciada como regra. São muito reduzidos os casos dos que saem da condição de trabalhadores assalariados e migram ao grande capital pelo mundo afora. Poucos também os que alcançam as condições de vida dos setores médios mais abastados, que se replicam e vivem do temor da proletarização e do sonho do aburguesamento.

Mas, apesar da ideologia, a realidade não pode ser apenas negada. A constatação da imensa maioria empobrecida das formações sociais capitalistas salta aos olhos de qualquer um. Para dar conta do contraste entre a ideologia e a realidade que teima em demonstrar que há algo errado encontramos saídas… ideológicas, ou melhor, por dentro da ideologia, que é inconsciente, ou seja, quem está dentro dela não sabe que está, portanto, trata a deturpação da realidade como sendo a própria realidade concreta.

A partir de dentro da ideologia, a constatação das desigualdades sociais vai levar, portanto, à consciência de que não podemos operar com a meritocracia, a não ser que tenhamos um instrumento de equalização de oportunidades individuais. Nas formações sociais capitalistas esse instrumento privilegiado é a educação formal. Supostamente, garantindo que todos passem pelos níveis da educação formal, colocaremos todos os indivíduos em igualdade de condições para disputar as oportunidades da vida, servindo, a partir daí, o esforço pessoal como a régua que mede e valida os resultados individuais e a certificação escolar como o que justifica e delimita a entrada em determinados postos de trabalho.

Três discursos próprios e a partir de dentro da ideologia derivam daí: primeiro, o discurso, mais próprio dos setores médios, que justificam suas posições pela certificação escolar e o empenho pessoal; segundo, aquele discurso que valoriza o acesso à educação formal como condição para um mundo melhor e o fim da miséria, que afeta quase toda a população, inclusive setores da esquerda, que além de ser falso, é um discurso liberal; por fim, o discurso que justifica a situação de miséria das massas porque não estudaram, porque não quiseram ou porque não tiveram acesso às escolas.

No Brasil, a meritocracia e a certificação escolar têm data: foi com a entrada do grande capital monopolista na década de 1950 e a partir das novas exigências para acesso às burocracias privada e pública, com a adoção de processos seletivos e concursos, respectivamente. É por essa razão que os setores médios são os que fazem mais uso da meritocracia e mais valorizam a certificação escolar: é a prova de seus esforços e a justificativa, diante da burguesia, de que podem e devem ocupar determinados postos. Até então, salvo exceções quase sempre formais, o acesso ao serviço público, inclusive às cátedras vitalícias das universidades, era feito por indicação. Os chamados canais tradicionais de manutenção e ascensão das camadas médias se dava por essas indicações, pelas empresas e negócios familiares, pelo trabalho autônomo de profissionais liberais. A certificação escolar não era uma necessidade. Tanto que até 1970 a maioria das vagas nas universidades brasileiras era ofertada por universidades públicas e gratuitas. Foi somente após o início da transformação monopolista do capitalismo brasileiro (que se completou com a ditadura militar) e da entrada das multinacionais que isso começou a mudar: as empresas familiares faliram aos montes, os profissionais liberais eram absorvidos pelas empresas privadas, o serviço público passou a adotar os concursos públicos… Isso tudo exigia, como pré-requisito (como ocorre hoje) um determinado nível de certificação escolar. Quebrados os canais tradicionais de manutenção e ascensão das camadas médias, seus filhos foram impelidos para a universidade atrás da certificação escolar, que não tinha capacidade para acolhê-los naquele número. É esse movimento que vai gerar a massa do movimento estudantil dos anos 1960, até que a Reforma Universitária da ditadura (de novembro de 1968) e o AI-5 (de dezembro do mesmo ano) resolvessem o problema.

A lei 5.540 de 28 de novembro de 1968, a chamada lei da Reforma Universitária, em pleno governo de Costa e Silva, adotou várias medidas que eram reivindicadas pelo movimento (extinção da cátedra vitalícia, organização por departamentos etc.) e anunciava a expansão universitária, de preferência, por universidades públicas. A expansão vai ocorrer, na verdade, através da multiplicação de instituições isoladas de ensino superior privadas, que passarão a oferecer um número cada vez maior de vagas e retirar das ruas a massa do movimento estudantil e aplacar os ânimos dos setores médios, que tendiam a passar ao campo da oposição ao regime, depois de lhe ter servido de base. A vanguarda mais politizada do movimento estudantil, que forneceu parte dos quadros das organizações de esquerda que resistiram à ditadura, foi calada pelo AI-5 (de 13 de dezembro de 1968, 15 dias após a lei 5.540…) e parte dela trucidada nos porões da ditadura nas sessões de tortura, na prisão e passou a figurar na lista dos mortos e desaparecidos1

Retornando ao nosso tema central, depois desse breve, mas necessário, recurso à história, podemos concluir que a meritocracia e a ideologia do mérito pessoal cumprem, como toda a estrutura ideológica, apenas um papel fundamental de auxiliar a reprodução do modo de produção capitalista, não permitindo que as razões reais e concretas das nossas desigualdades sociais apareçam de forma clara e transparente. Igualmente o discurso liberal, que gira em torno da educação formal, como instrumento fundamental de equalização de oportunidades, que é replicado por tantas mentes progressistas e até bem intencionadas. A história, porém, não é feita de atos de vontade, muito menos de boa intenção. Como dizia Althusser, a escola aparece hoje como algo inquestionável, como uma instituição fundamental e benfeitora, assim como a igreja católica aparecia na idade média. No resultado, cumprem, de fato, papéis políticos semelhantes…

Não é preciso ser um estudioso do tema para perceber que o que impele às faculdades os filhos dos setores médios e dos trabalhadores às faculdades nos centros urbanos do Brasil é a necessidade do diploma, não a da construção do conhecimento. A diferença está no destino desses setores distintos: há um processo de elitização de determinados cursos e universidades na medida em que a certificação escolar vai se tornando requisito para o emprego e na medida em que as universidades e faculdades privadas, movidas já por um empresariado voltado à educação, ampliam a oferta de vagas para setores médios menos abastados e para setores mais empobrecidos da população.

O aumento da oferta da população com certificação do ensino superior vai gerar, de um lado, uma desvalorização dos salários desses profissionais e, de outro, o fenômeno da sobrecertificação2: havendo grande oferta de diplomados, as empresas passam a elevar os requisitos de certificação escolar para funções antes ocupadas por gente com apenas algum nível de conclusão da educação básica; isso faz com que o acesso ao ensino superior se torne uma necessidade, dado que o diploma é a condição para o emprego, mesmo nos escalões mais baixos dos setores público e privado. No lado oposto, a defesa de uma certa reserva de mercado vai provocar a elitização mencionada acima: cursos muito caros (mesmo em universidades públicas por causa dos livros, materiais etc.), em tempo integral, com baixa oferta de vagas e processos seletivos e notas de corte altíssimas.

É com resignação (resultado da ideologia) que as famílias mais empobrecidas aceitarão os cursos mais baratos e “populares” ofertados pelas universidades privadas e os mais “populares” das universidades públicas, que têm maior facilidade de acesso.

Do outro lado, é com obstinada resistência que os setores médios mais abastados defenderão determinados cursos do acesso dos trabalhadores e, para isso, utilizarão do discurso do mérito pessoal, da defesa intransigente da meritocracia, como condição não de sua ascensão, mas de sua manutenção como setor médio abastado, supostamente legitimado pelo esforço pessoal e pelo investimento familiar na educação em escolas privadas bastante caras e voltadas a esse público. Parece convencer muita gente esse argumento, que vai fazer a crítica da educação básica pública, de má “qualidade”, como forma de pulverizar as responsabilidades.

O Estado, por sua parte, para poder manter sua posição (também ideológica) de uma instituição imparcial e que zela pelo bem comum, vai fazer concessões aos trabalhadores e aos setores médios menos abastados na medida em que alcançam capacidade de organização: bolsas e programas de financiamento para os mais pobres destinados, prioritariamente, às instituições privadas, como o Prouni e o Fies. Também o faz através da adoção de políticas afirmativas voltadas a determinados setores. Entra em cena a polêmica das cotas sociais e as cotas étnicas.

Não há dúvida de que, no que se refere à educação formal de nível superior, a pressão pelas cotas parte de setores médios menos abastados, muito mais que dos trabalhadores manuais. Nas periferias das grandes cidades brasileiras é fácil perceber que esse tema das cotas não comove muita gente, nem mesmo é bandeira de luta de alguns movimentos, como parte do movimento negro que se origina das lutas populares e não de estratos médios. Alguns chegam a combater a política de cotas, fazendo um discurso semelhante aos dos setores médios abastados ou apenas afirmando que, diante dos problemas enfrentados para a manutenção da vida nesses bolsões de pobreza, o acesso ao ensino superior não é um tema relevante.

Duas coisas ainda merecem ser mencionadas neste breve texto e que nos colocam a favor da política de cotas: primeiro, a importância da política de cotas; segundo, o papel que ela cumpre na luta de classes. Vejamos.

Primeiro, as cotas, sejam elas sociais ou étnicas, não resolvem o problema da pobreza, muito menos do racismo ou da discriminação racial, mas cumprem dois importantes papéis. De um lado, as cotas permitem dar acesso a espaços e a profissões negados a uma população que foi excluída historicamente e isso tem um peso importante, inclusive para quebrar o discurso meritocrático, na medida em que essa população não acessa como regra a universidade pública pelos canais tradicionais, construídos para os filhos dos setores médios mais abastados. Pesquisas recentes têm demonstrado que o desempenho dos que entram pelas cotas tem sido igual e as vezes superior ao dos demais estudantes. Por outro lado, não há dúvida que a polêmica que gira nos últimos anos em torno das cotas tem reabilitado e escancarado o debate sobre o racismo e a discriminação étnica no Brasil, debate este abafado ao longo da República pelo mito da democracia racial.

Em segundo lugar, devemos destacar que a educação formal (as escolas, as universidades, os currículos, os professores etc.) é um instrumento poderoso de inculcação ideológica, mas é também espaço da luta de classes, como todos os espaços sociais, porque é permeado por contradições que, ainda que negadas ideologicamente, existem concretamente. Nesse sentido, a defesa da política de cotas, somada a outros elementos, atua nessas contradições, as aguça e ajuda a escancarar as causas reais das desigualdades num país como o Brasil.

Novamente é preciso dizer que não defendemos aqui que as cotas resolvem esses problemas. Mas é necessário reconhecer que abrem espaço para que possamos desmistificar e colocar às claras os limites da meritocracia e da ideologia do mérito pessoal, conjunto que ao mesmo tempo esconde e justifica as desigualdades sociais e a exploração de classe.

1Para uma análise mais pormenorizada desse processo ver: MANGOLIN, Cesar. Ensino superior e sociedade brasileira: Análise histórica e sociológica dos determinantes da expansão do ensino superior no Brasil (décadas de 1960/70). Dissertação (Mestrado em Educação). UMESP, São Bernardo do Campo, 2008. Disponível em: https://cesarmangolin.wordpress.com/wp-content/uploads/2010/02/mangolin-ensino-superior-e-sociedade-brasileira-dissertacao-de-mestrado-2007.pdf

2Tratei melhor o tema, inclusive agregando o elemento da exclusão prorrogada no artigo no qual propus o conceito de “sobrecertificação” no lugar de “sobrequalificação”. Ver: MANGOLIN, Cesar. Sobrecertificação e expansão: o ensino superior brasileiro e a exclusão prorrogada de Pierre Bourdieu. In: Educere et Educare. Vol.6, nº 12 (jul/dez) 2011. pp. 133-147. Unoeste/ Cascavel. Disponível em: https://cesarmangolin.wordpress.com/wp-content/uploads/2010/02/mangolin-sobrecertificac3a7c3a3o-e-expansc3a3o-o-ensino-superior-brasileiro-e-a-exclusc3a3o-prorrogada-de-pierre-bourdieu.pdf

Viuvez ou adultério? O antipetismo de esquerda.

Cesar Mangolin

Dilma concorreu as eleições com outros 10 candidatos Seis deles eram ex-petistas. Eduardo Jorge (PV), Marina Silva (PSB), Luciana Genro (PSOL), José Maria (PSTU), Mauro Iasi (PCB) e Rui Costa Pimenta (PCO). Nenhum deles apoiou o PT no segundo turno…

Os dois primeiros já estavam no colo da direita e se juntaram ao PSDB. O PSOL, que teve o mérito de pelo menos perceber as contradições do processo, liberou a militância para o voto, desde que não fosse em Aécio. Os dois partidos trotskistas fizeram o de sempre: declararam o voto nulo. O PCB, infelizmente, lhes seguiu os passos.

Claro que há razões apenas políticas (ainda que equivocadas na minha opinião) para a tomada de posição desses partidos, mas como não pensar que a coincidência dos ex-petistas não agrega no jogo uma pitada de questões subjetivas?

Sempre considerei o PT uma esquerda anticomunista. Valeria escrever um dia sobre isso e tentar colocar no papel de forma mais sistemática essa compreensão. Mas percebo a formação de uma esquerda antipetista, que me parece viver de dois impulsos: o esquerdismo e os rancores pela militância pregressa.

Alguém um dia criou a alcunha “viúvas do PT”… Independente daquele contexto, poderíamos pensar hoje que existe gente sofrendo de viuvez ou dos dramas do adultério… A viuvez faz lamentar aquele que não voltará jamais… O traído vive a mistura da saudade e do rancor raivoso por aquele que um dia acreditou ser o companheiro ideal para seguir até o final dessa jornada… Lembro bem, ali ainda no final dos anos 1980 e começo da década de 1990 como muitos dos que hoje engrossam as fileiras de outras organizações declaravam a certeza e o amor à alternativa popular e (na cabeça deles) revolucionária que significava o PT.

Viuvez ou adultério, pouco importa, o fato mesmo é que a chamada esquerda revolucionária é composta por partidos que saíram de dentro do PT (PSOL,PSTU e PCO) ou que recebeu militantes oriundos do PT (como o caso do PCB) ali na metade do primeiro mandato de Lula, que passaram a cumprir importantes papéis de direção e participaram de mudanças qualitativas na linha política e na organização. Há, sem dúvida, aspectos positivos nisso: o PCB ainda nas eleições de 2004 estava em coligações de direita por onde estava organizado. A partir de 2005 as coisas mudaram, mas guinaram ao esquerdismo.

As referidas organizações possuem o mérito de manterem, afirmativamente, a bandeira do socialismo e da necessidade do processo revolucionário vivos, mas que (e por razões diversas) não conseguindo participar das lutas concretas e das contradições realmente existentes em nossa conjuntura, atuam negativamente com relação à própria possibilidade de avanço desse processo, embora ressalvas devam ser feitas com relação ao PSOL, que tem feito um esforço em participar, a seu modo, da vida concreta. Além de PCB, PCO, PSOL e PSTU, há mais uma infinidade de “coletivos”, “agrupamentos”, “ligas” e outras coisas que possuem, cada qual a sua maneira e de forma cada vez mais isolada, um belo discurso revolucionário e “vanguardeiro”. Quanto menores e mais distantes da realidade, mais esses pequenos grupos se apresentam como os portadores da verdade revolucionária.

Confundindo a realidade objetiva com a própria vontade (como é próprio do esquerdismo) esses grupos confundem o objetivo revolucionário (estratégico) com as mediações necessárias e cambiantes de cada conjuntura (a tática): ao afirmar a necessidade da revolução, afirmam também que as condições para que ela ocorra já estão presentes, atribuindo aos traidores da classe (como é próprio do trotskismo) ou a pequenos ajustes conjunturais a razão do seu atraso. Não é raro dirigentes dessas organizações verem a “protoforma do proletariado revolucionário” em ação nas ruas, mesmo quando temos apenas uma manifestação massiva e plena de contradições com tendências majoritárias à direita como foram as tais “jornadas de junho”. O revolucionarismo pequeno-burguês, mesmo que tenha participado daqueles eventos à reboque e a duras penas com seu reduzido número de militantes, tende a ver-se como a essência cristalina e pura da transformação como mero ato subjetivo da vontade. Não conseguiram explicar até hoje como o “proletariado revolucionário” das ruas de junho apareceu depois, nas urnas, como eleitores de Aécio Neves e de Marina Silva e hoje se apresenta como a base social que pede o impeachment de Dilma e/ou a ditadura militar… Insistem apenas em proclamar-se os fiéis representantes da “rebeldia das ruas”, ainda que ela não ocorra…

O silêncio dessas organizações sobre a escalada de direita e golpista que vivemos é sintoma de sua ausência de realidade, de sua incapacidade de análise concreta da situação concreta, de uma posição moralista derivada daí (o famoso “isso é culpa do próprio PT que blablablabla…”) e de um ranço que apenas posso compreender como subjetivo (a viuvez ou o adultério…) que cega a todos ou parte de seus dirigentes.

Mas há dois argumentos rápidos que devem ser apresentados para justificar uma ação contrária à escalada da oposição à direita: um é sócio-econômico e mais óbvio; outro é somente político e também óbvio, não fosse a cegueira dos nossos dirigentes. Mas dizer o óbvio tornou-se praxe dos nossos dias…

Mas vamos ao primeiro: o governo de Dilma e os governos do PT têm problemas, não há dúvida. O partido ajustou-se perfeitamente à lógica do jogo capitalista, assim como todo e qualquer governo anterior, assim como todas as instâncias pelo país afora, assim como quase todos os partidos. São governos que jamais pretenderam ou prometeram fazer além do que fazem: gerenciar o capitalismo brasileiro concedendo ou reconhecendo alguns direitos a mais aos trabalhadores e às populações mais empobrecidas. Não acho, no entanto, que isso seja pouco, ou que seja desprezível.

Li, ano passado, um texto de um partido da esquerda que defendia que as duas candidaturas no segundo turno eram iguais: uma era capitalismo com mais Estado, a outra com menos… Burrice: mais ou menos Estado, nas nossas condições objetivas, significa retirar ou lançar muita gente na miséria absoluta e isso deveria interessar bastante aos que lutam ao lado dos trabalhadores…

Constatar que os governos de Lula e Dilma servem ao grande capital é como afirmar com tom de descoberta científica que fogo queima e água molha. Não apenas o de Dilma e Lula, mas também os de FHC, de Collor, de Sarney, os dos generais da ditadura… Para marxistas deveria ser bem óbvio que, dentro da ordem burguesa, não apenas o Estado, mas toda a estrutura jurídico-política serve ao grande capital. O mesmo serve também para o tratamento dos limites dos processos eleitorais dentro dessa ordem. O que falta aqui é perceber, a partir da análise da nossa conjuntura e não da que a vontade desejava que existisse, que a ordem burguesa, assim como o processo revolucionário, não são estáticos, portanto, são plenos de movimento e de contradições. É tendo como referência o objetivo estratégico que as mediações com a vida real precisam ser construídas. Isso significa participar da vida e das lutas do cotidiano dos trabalhadores, das condições severas e adversas que abrem as possibilidades de avançar um passo aqui e recuar outros ali. Significa atuar em todas as contradições possíveis dentro da ordem burguesa, no sentido de aguçá-las. Não podemos afirmar que os governos Lula e Dilma são a mesma coisa que os governos de FHC. O esquerdismo é leviano e irresponsável quando faz isso. Há, sem dúvida, uma melhora nas condições de vida dos trabalhadores, em particular dos mais empobrecidos. Mudanças que, aliás, têm mudado o cenário de alguns cantões do Brasil, utilizados até pouco tempo atrás como reserva de votos de legendas da direita, como o DEM.

Enfim, não é possível fazer festa para os governos do PT, sem dúvida, como fazem o próprio partido e alguns de seus aliados de sempre do campo da esquerda, como o PCdoB. Que o governo serve aos interesses do grande capital não há dúvida, mas isso não nos deve permitir negar que ocorreram mudanças, mudanças qualitativas, que abrem e podem ainda abrir novas contradições, tanto entre frações do capital (a financeira e a industrial, por exemplo), como abre possibilidades para a atuação dos setores mais avançados da esquerda, com possível acesso a áreas e a contingentes de trabalhadores que, tendo necessidades básicas sanadas, abrem-se também para a possibilidade de outras soluções, para além do clientelismo do Estado, pelo menos em princípio para simplesmente ter acesso a condições mais favoráveis de vida. Para que isso ocorra necessitamos de organizações comprometidas com a estratégia revolucionária, mas que tenham os pés bem grudados no chão e sejam capazes de participar dessas lutas, desse processo. Vejam que falo do “possível”: isso significa que as contradições que se abrem apenas podem ser resolvidas ou aguçadas favoravelmente aos trabalhadores caso tenhamos uma ação consequente, que saiba apontar a contradição, o caminho de sua resolução e os limites do resultado dentro dessa ordem…. Apenas com forte trabalho inserido e a partir dessas novas possibilidades há construção efetiva de organizações revolucionárias e a possibilidade, no longo prazo, da retomada concreta da perspectiva socialista…

Fora essas novas e as antigas possibilidades, fora as novas contradições que esse ciclo gera, é necessário ter responsabilidade com aqueles que estão mais fragilizados pela pobreza extrema. Ainda que sejamos ainda um país de pobres, esse período recente conseguiu retirar da fome milhões de pessoas. Isso somente é um dado secundário para quem está com o buchinho cheio e olha o Brasil a partir da janela fechada do carro e vê apenas a Avenida Paulista, sonhando com a Champs-Elysées… A manutenção desses programas e a luta popular para que avancem para além disso deve ser uma bandeira de luta das organizações mais avançadas.

Isso nos remete ao segundo argumento, que apresento de forma rápida e direta: nossos dirigentes confundem elementos teóricos que utilizamos para pensar o modo de produção capitalista com a conjuntura política que é cambiante e exige maior criatividade. Exemplo para ir ao cerne da questão: o Estado, segundo Marx e Lênin, é sempre um Estado de classe. De alguma forma, a existência do Estado sempre será a ditadura de uma classe sobre outras, o “comitê executivo” da dominação de classe etc.. Isso é verdade e característico também das formações sociais capitalistas. Mas essa que é uma ditadura de classe historicamente se reveste na forma da democracia burguesa em períodos mais ou menos longos… O elemento fundamental que faz com que essa ditadura de classe seja obrigada a conviver com maiores ou menores liberdades democráticas é a luta de classes.

Objetivamente, é a capacidade de organização política dos trabalhadores e suas organizações que forçam, alterando a correlação política de forças, conquistas sociais e também espaço de ação política. Penso que somente os tolos podem acreditar que as condições de uma ditadura escancarada pode ser mais favorável à organização dos trabalhadores que as possibilidades de ação “abertas” pela democracia burguesa… É neste cenário que devem atuar e, portanto, todas as organizações dos trabalhadores devem lutar com todas as forças contra o golpismo em marcha, seja na forma da ditadura, seja na forma do golpe à paraguaia…

Isso não faz ninguém virar petista (ou retornar ao PT)… Isso é apenas atuar na nossa conjuntura politicamente e não de forma moralista, tendo clareza da nossa realidade concreta, atuando e aguçando suas contradições. Engrossar o cordão da direita fazendo oposição pela esquerda é um suicídio político. Falam línguas diferentes, mas falam a mesma coisa. A deposição da presidente na atual conjuntura representa um grande retrocesso para os trabalhadores brasileiros. É necessário ser bastante estúpido para tratar disso analisando “culpas”, ou afirmando que esse problema não é dos revolucionários…

Essas organizações, porém, com exceção do PSOL (até certo ponto), não possuem força política alguma… Pois então: atuar na conjuntura concreta, sem a postura moralista e infantil que tem marcado suas resoluções, é o único caminho e possibilidade que possuem de ter alguma relevância política. Os partidos trotskistas jamais compreenderão isso, mas o PSOL e o PCB (que tem agido e pensado, sintomaticamente, como uma organização trotskista) têm aberta a possibilidade e têm também o dever de abrir caminho para alternativas reais e concretas à esquerda. Isso somente se constrói com a inserção nos movimentos sociais e lidando com a realidade.

Mas o esquerdismo é implacável… As eleições passadas servem de exemplo. Repito aqui algo que escrevi naquele momento: A ausência de estrutura material e o desigual acesso aos meios de comunicação de massa justificam parcialmente a parca votação das candidaturas da esquerda. Mas devemos também considerar suas dificuldades em dialogar com os trabalhadores há muitos anos e de participar dos problemas e das lutas cotidianas. Ao apresentar apenas o horizonte estratégico (socialista), sem as devidas mediações, essas organizações acabaram por se fechar ainda mais no universo pequeno-burguês que combina com sua linha política escatológica. Orgulham-se de não fazer política porque assumem o dever (moralista) de não lidar com nada que não seja diretamente a revolução. Como ela não chega logo, da mesma forma que para os cristãos Jesus demora em voltar, vivem de apontar os dedos para os que se maculam nas fétidas águas da realidade objetiva. E tocam a vida satisfeitos e plenos de razão…

Portam-se como quem chega virgem aos 100 anos e nada mais lhe resta a não ser autovalorizar a própria pureza, ainda que ninguém se importe com isso.

A culpa é da Dilma: O antipetismo de direita

Cesar Mangolin

Um jumento em disparada faz algum estrago… Um bando deles faz mais ainda. Inconsequentes, não darão a devida importância para os danos que podem causar, apenas correm, destruindo tudo ao redor. Nem mesmo fazem ideia de quem abriu a porteira, talvez propositalmente.

Os neo-militantes de direita agem assim. Tomam problemas seculares do Brasil (como a corrupção) como se fossem obras dos últimos governos; atribuem à presidência da República responsabilidades de outras instâncias, inclusive responsabilidades dos abridores de porteiras bicudos que povoam nosso país e não se conformam com a derrota sofrida nas urnas.

Chama mais ainda a atenção que temos jumentos desembestados que se somam aos da direita vindos da esquerda, mas trataremos deles em outro texto…

Com vergonha alheia, vi gente (quase 40% da população) que atribui a falta de água ao governo federal; há quem atribua a segurança pública também. Mas há episódios mais tristes ainda: vi uma postagem que dizia que a Dilma havia concedido o direito de visita íntima a um assassino! Para esses tontos, a culpa de toda e qualquer desgraça brasileira tem nome: Dilma!

Enfim, chegamos num ponto em que a frase afirmativa “há limites para a estupidez!” somente pode ser proferida na sua forma interrogativa: “Há limites para a estupidez?” Parece que não.

A corrupção é inerente ao capitalismo… No Brasil persiste há muito. O caso da Petrobras, tomado com assombro pela mídia golpista e a classe média cor-de-rosa, é velho. Ainda era um adolescente quando trabalhava numa loja de conexões e ouvia um vendedor externo contar histórias sobre as casas de praia de compradores da Petrobras… Nessa mesma época aprendi que a propina, que “molhar a mão”, o “fazer rir” era uma prática comum. Nunca gostei nem a pratiquei, mas todos nós convivemos com ela. Quem descobriu apenas agora que as empreiteiras e demais empresas subornam compradores em processos licitatórios? Quem não sabe que há décadas no Estado de São Paulo algumas empreiteiras dividem entre si as grandes obras e “molham as mãos” de agentes do Estado? Corruptores e corruptos, farinhas do mesmo saco, crias da mesma ordem, existem desde muito tempo: isso não foi uma invenção dos governos do PT.

Mas a jumentice parece ter se tornado um adjetivo muito comum dos nossos tempos obscuros…

Há uma movimentação que envolve a grande mídia, políticos tradicionais com capivaras imensas, o tucanato, o judiciário e uma massa de manobra histérica que parece que começou a viver apenas agora e perceber as mazelas do tipo de capitalismo que se desenvolveu no Brasil.

Embora falem em nome de algum Brasil, fica claro, pelo que defendem, que não incluem o Brasil da população que mais sofreu, pela marginalização e empobrecimento contínuo, com a dragagem das nossas riquezas naturais e com a concentração de riqueza gritante e secular… A massa de manobra histérica não faz parte, obviamente, da seleta elite que concentra em suas mãos o grosso da riqueza social produzida. Os que esbravejam contra o PT e o governo não têm ideia do que estão falando; não são capazes de apontar uma solução mínima para qualquer problema. Repetem chavões, palavras de ordem sem sentido, de gente que não conhece minimamente nossa história recente.

Façam um teste: pegue um desses surtados e pergunte o que está errado e o que deveria ser feito para resolver o problema… Vai receber de volta um grunhido histérico e sem sentido, porque eles não sabem do que estão falando.

O mais triste e temerário é que forçam uma crise política seríssima, que interessa a determinados setores do grande capital. São marionetes dele…

Defendem o retorno da ditadura militar sem saber minimamente o que caracterizou aquelas duas décadas: entrega das nossas riquezas ao  capital estrangeiro; perda constante de poder aquisitivo dos salários; mais de dez milhões de mortos por fome no nordeste; genocídio de populações nativas; prisões arbitrárias, censura, tortura e assassinato…

Há também a curiosa postura da classe média brasileira que tem asco de tudo que se refira a trabalhador…

Os governos do PT atendem, sem dúvida, aos interesses do grande capital. É um governo da ordem burguesa, que dirige o Estado capitalista… Mas ao deslocarem esforços e recursos no atendimento a populações deixadas de lado por nosso processo histórico, deslocam recursos dos cofres do grande capital, que sempre tem espaços vazios para serem ocupados. No momento da crise que envolvia o segundo mandato de FHC, o PT e o governo de Lula, com as garantias que deram, foram palatáveis ao grande capital. Na entrada dessa nova crise, trata-se de tornar toda e qualquer fonte sob controle absoluto. Há muita diferença numa taxa selic de 36% (segundo mandato de FHC) e numa de 12%… Ou 7.4, que foi o mínimo alcançado no primeiro governo de Dilma… Isso toca em interesses diversos, beneficia algumas frações do capital, prejudica outras. A pressão dentro do bloco no poder e a capacidade de uma dessas frações tornar o Estado seu valet é o que está em jogo…

Há muito que se estudar e escrever sobre essas contradições, mas isso toma muito espaço… Mas, principalmente, exige tempo e paciência histórica. Algo que está ausente por aqui… Mas retomarei o argumento para falar do antipetismo de esquerda depois…

Por enquanto, vale a constatação de que os neomilitantes da direita e os da esquerda preferem facilidades: análises de lógica formal, sem contradições. Um programa redondinho e internamente coerente, ainda que não tenha relação com a realidade. O papel aceita qualquer coisa: recebe textos sagrados e também é utilizado nos banheiros…

Valeria aos que histericamente pedem o impeachment de Dilma pensar um pouco nos pressupostos do que chamam de “limpeza” da política, pensar nas soluções para nossos problemas mais graves… Caso sejam capazes de fazer isso, descobrirão que as soluções que andam apoiando representam um passo atrás muito perigoso. Que as marionetes desse jogo anti-popular percebam que ajudam a abrir as portas do seu próprio abismo.

Ditadura Militar: relato do assassinato de seis militantes da VPR

Cesar Mangolin

Recebi (de Ruth Previati) um link da Folha de São Paulo (de 19-01) que relata o assassinato de seis revolucionários da VPR em 1974 pela ação de agentes infiltrados que os levaram a uma emboscada no Paraná. Tal relato é parte do grandioso trabalho que a Comissão da Verdade tem realizado (tanto a nacional quanto as estaduais e específicas) de reconstrução da história recente do Brasil e esforço para que, pelo menos, os brasileiros saibam o que ocorreu naquelas décadas obscuras da ditadura. Dentre os revolucionários assassinados estava Onofre Pinto, um dos fundadores da VPR, ao lado de João Quartim de Moraes. Ex-sargento, militar nacionalista, contrário à ditadura militar e cassado por ela, Onofre foi morto com uma injeção de inseticida e teve o corpo mutilado (para não ser identificado) e lançado em um rio, segundo o infeliz que participou do seu assassinato. Onofre figura até hoje na lista dos “desaparecidos”.

Lamentáveis são os comentários no final da reportagem sobre a ação dos “heróis” militares que “salvaram o Brasil dos comunistas”! A Comissão da Verdade foi além e também contabilizou quase 9.000 nativos (ou como insistimos erroneamente em chamá-los, índios) de diversas etnias entre as vítimas da ditadura. Poderíamos acrescentar ainda os milhões mortos pela fome, principalmente no Nordeste do país…

Mas os tontos persistem com suas tonterias, por mais que tenhamos muita produção teórica e histórica que demonstra que a ditadura teve um sentido bastante diferente daquele que acreditam e mesmo revelando seu caráter sanguinário… Há os que defendem a volta dos militares… Nunca é demais, porém, insistir e dizer o óbvio, mesmo que saibamos que os estúpidos são incapazes de mudar de posição. Como disse em texto recente, quem apenas aprendeu a relinchar e abanar as orelhas tem grande dificuldade de entender coisas novas. O ditado popular sintetiza isso: para essa gente, mudar a cor do capim significa a morte por fome.

Recomendo a leitura das matérias – sobre a VPR e sobre os nativos – (cujos links seguem abaixo) e reproduzo depois um texto meu de 2012 que trata dos que tinham medo dos trabalhos da Comissão da Verdade e comenta uma outra entrevista, de um delegado do Dops, assustadora tanto quanto, que revela as colaborações entre grandes empresas e empresários e o aparato repressivo da ditadura.. Os comentários feitos naquele ano me parecem ainda válidos.

Seguem os links:

http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/01/1576945-militar-contou-a-comissao-da-verdade-como-ajudou-a-emboscar-militantes.shtml?cmpid=comptw

http://www.rededemocratica.org/index.php?option=com_k2&view=item&id=7219%3A8350-%C3%ADndios-foram-mortos-na-ditadura-militar

Por que têm tanto medo (me refiro à exposição da história real) os que persistem vivos e participaram daquilo tudo, além de seus epígonos mais jovens, também formados dentro de fascistóides teorias nacionalistas?

O revanchismo é a acusação regular. No caso, me parece descabida, visto que somente temos uma revanche após uma derrota e o que está em questão não é a vitória ou a derrota, mas os métodos utilizados, condenáveis, inclusive, pela legislação internacional no que concerne às situações de beligerância. Tortura e assassinato de prisioneiros de guerra, ou no caso, de quem está sob a guarda do Estado, não me parece ser alvo de revanche, mas de necessária averiguação e punição de criminosos de guerra.

Deixo, no entanto, este discurso jurídico para os que gastam a vida com ele. Importa pensar no que está por trás dessas movimentações.

Não podemos esquecer o caráter de classe do golpe de 1964. A ditadura, em nome  da ordem (da ordem burguesa, obviamente), pôs abaixo a própria ordem burguesa instituída pela Constituição de 1946. Não foi em nome daquela ordem que o golpe foi dado, mas em nome de uma  nova ordem, surgida com a entrada maciça do capital monopolista ao longo da década de 1950. Foi no interesse do grande capital que a própria ordem burguesa, que permitia ainda a eleição de presidentes com projetos centrados na tradição trabalhista e no desenvolvimento nacional com relativa autonomia, foi colocada abaixo para, sobre ela, se erguer uma nova ordem, que permitiria a livre exploração das riquezas e dos trabalhadores brasileiros.

Os militares podem até, em sua maior parte, ainda acreditar que salvaram o Brasil de alguma coisa ruim, que eles mesmos até hoje não entendem bem. É próprio dos que se disciplinam a receber ordens sem pensá-las. O que importa, porém,  não é no que acreditam os que se movimentam, mas efetivamente pelo que lutam. Lutaram, de forma covarde, pelos interesses do grande capital. Torturaram, assassinaram, ocultaram cadáveres, produziram histórias para justificar suas atrocidades. Tudo isso para que a exploração se acentuasse sem questionamento.

Os que executaram podem até, em parte, pensar que estavam cumprindo um grande trabalho em defesa da pátria. Os piores papéis sempre necessitam dos tolos. Mas, para além dos testas-de-ferro, sabemos que não apenas os altos oficiais, mas também muita gente de fora dos quartéis sabia muito bem o que ocorria ali e exatamente pelo que lutavam. Lembrem dos assíduos contribuintes do IPES e do IBAD; lembrem de Boilesen, o grande empresário que não se contentava apenas em patrocinar o aparelho repressivo, mas também de assistir às torturas. Os amigos de Boilesen não são poucos. Eles devem temer muito o resultado de uma comissão que apure e dê ao povo brasileiro uma versão real dessa história.

Li recentemente uma entrevista de um desses carniceiros ainda vivos. Um delegado da Polícia Civil, chamado José Paulo Bonchristiano, também conhecido com a singela alcunha (que demonstra bem sua tarefa e seu estilo) de “Paulão Cacete e Bala”. Assim era carinhosamente chamado pelos próprios companheiros de ofício. (a entrevista está disponível em: http://br.noticias.yahoo.com/especial-conversas-com-mr-dops.html?page=all ).

Ali temos relatos interessantes de um delegado do Dops, que trabalhava com Fleury (outro carniceiro, “que deveria ter um busto em praça pública”, como diz nosso “Paulão”).

Sobre a ligação com grandes empresários brasileiros, totalmente vendidos e atrelados ao grande capital internacional, temos o seguinte:

Bonchristiano é um dos poucos delegados ainda vivos que participaram desse período, mas ele evita falar sobre os crimes. Prefere soltar o vozeirão para contar casos do tempo em que os generais e empresários o tratavam pelo nome. Roberto Marinho, da Globo, diz, “passava no DOPS para conversar com a gente quando estava em São Paulo”, e ele podia telefonar a Octávio Frias, da Folha de S. Paulo “para pedir o que o DOPS precisasse”. Quando participou da montagem da Polícia Federal em São Paulo, conta, o fundador do Bradesco mobiliou a sede, em Higienópolis: “Nós do DOPS falamos com o Amador Aguiar ele mandou por tudo dentro da rua Piauí, até máquina de escrever”.

Os generais, a Globo, a Folha e o Bradesco, num único parágrafo, numa única lembrança!

Sobre o treinamento recebido da CIA: “Gaba-se de ter sido enviado para “cursos de treinamento em Langley” nos Estados Unidos, pelo cônsul geral em São Paulo, Niles Bond, que admirava a “eficiência” da polícia política paulista. E o chamava de “Mr. Dops””.

Além de treinar 100 mil policiais no Brasil, a OPS-CIA selecionava policiais e oficiais militares para estudar em suas escolas no Panamá (1962-1964); e nos Estados Unidos, depois que a Academia Internacional de Polícia (IPA) foi inaugurada em 1963 em Washington, funcionando até 1975. No Brasil, o OPS ficou até 1972, quando o Congresso americano começou a investigar as denúncias de que o programa patrocinava aulas de tortura.

A IPA foi um das “escolas” nos Estados Unidos que recebeu Bonchristiano antes mesmo do golpe militar. Dois anos antes – logo depois de ser aprovado no concurso para delegado de 5ª classe, o início da carreira, ele já frequentava a casa do diretor DOPS Ribeiro de Andrade, no Jardim Lusitânia, em São Paulo. “Ele estava sempre de portas abertas para nós, ficávamos lá conspirando”, ironiza.

A eficiência a que se refere o texto todos sabem bem qual era…

E dentre seus incríveis trabalhos à mãe pátria está o que segue:

Bonchristiano tornou-se delegado de 2ª classe em 1969 e foi promovido “por merecimento” a delegado de 1ª classe em 1971. Naquele mesmo dia, admitiu que frequentava os outros centros de tortura montados em São Paulo a partir de 1969, como a OBAN (Operação Bandeirante)  e o DOI-CODI, comandados pelo Exército e compostos de policiais civis e militares instruídos a torturar. Só no período de 1970 a 1974, a Arquidiocese de São Paulo reuniu 502 denúncias de tortura no DOI-CODI paulista, apelidado jocosamente pelos policiais de “Casa da Vovó”.

Bonchristiano disse então que “alguns da diretoria do DOPS” participaram da montagem da OBAN – “os militares não entendiam nada de polícia, depois aprenderam” – e que cederam três delegados no início das operações, todos incluídos entre os torturadores na Lista de Prestes: Otávio Medeiros, ligado ao CCC (Comando de Caça aos Comunistas) e à TFP (Tradição, Família e Propriedade), assassinado em 1973 por militantes da resistência armada; Renato d’Andrea, colega de Bonchristiano na Faculdade de Direito da PUC; e Raul Nogueira de Lima, o Raul Careca, ex-investigador subordinado a Bonchristiano e ligado ao CCC, que se tornaria delegado depois.

Levaram também os métodos da polícia, incluindo o pau-de-arara – na origem um cabo de vassoura apoiado em duas mesas, onde os policiais deixavam o preso pendurado por pulsos e tornozelos até que a dor insuportável os fizesse “confessar””.

Tortura e assassinato, a ligação estreita dos militares com a política civil, mais o CCC, mais os dementes da TFP, grandes empresas nacionais e estrangeiras… Dá pra ver que a coisa era maior que uma pendenga apenas com os militares.

Já chega… Como podem ver não é preciso ir tão longe para saber nomes, responsáveis pelas ações. O que seria preciso, na verdade, e talvez esse seja o medo maior, é apurar quais eram os verdadeiros mandatários, os verdadeiros responsáveis, não apenas os agentes diretos. Neste caso também não é necessário avançar muito e a própria entrevista do orgulhoso Sr. Cacete e Bala já resolveria a questão.

No manifesto publicado e assinado por diversos altos oficiais, intitulado “ELES QUE VENHAM. POR AQUI NÃO PASSARÃO!”, numa atitude típica dos valentões de coturnos, se pode ler: O Clube Militar, sem sombra de dúvida, incorpora nossos valores, nossos ideais, e tem como um de seus objetivos defender, sempre, os interesses maiores da Pátria.”

Pois é… os interesses maiores da Pátria coincidiam (e ainda coincidem) com os interesses da Globo, da Folha, do Bradesco, da Ultragas, enfim, com os interesses do grande capital, jamais com os interesses dos trabalhadores brasileiros!

Assisti um dia desses uma entrevista com Carlos Chagas, jornalista que foi assessor do ditador Costa e Silva, segundo general presidente e responsável pelo AI-5 que, como todos sabem, instituiu de uma vez por todas e de forma brutal, a ditadura no final de 1968.

Chagas disse ter visto o choro do presidente, quando já afastado e sem poder falar por causa da doença que o levou à morte, quando em perguntas seguidas se descobriu que  a maior tristeza daquele que via a morte bem perto era não ter conseguido acabar com o AI-5 e reabrir o Congresso. Disso, tirou a conclusão da bondade do ditador e de que não havia mocinhos e bandidos naquela história.

De fato, somente os imbecis pensam a história como a luta eterna entre mocinhos e bandidos. Não faremos isso aqui. Mas também é preciso ter a mesma qualidade, quando não má intenção, para se chegar à conclusão da bondade ou do arrependimento e, assim, num ato de perdão cristão, depois de estapeados os dois lados do rosto, tratar tal figura central de toda essa tragédia como o pobre homem que era bom, mas as circunstâncias o forçaram fazer algo ruim, mas necessário (para os objetivos postos).

A história não é feita por intenções, nem a bondade, tampouco a maldade, podem nos servir  para compreendê-la, muito menos o arrependimento. Nos serve apenas a análise fria do que foi consumado e como foi consumado, as disposições e desdobramentos, no palco das lutas de classes, da forma como efetivamente ocorreram e seus resultados. O imbecil que individualiza a história está ao lado daquele que constata que o que não ocorreu não poderia ter ocorrido. Dentro da trama e dos encontros, a tarefa principal é compreender porque ocorreu assim e extrair disso boas lições.

Uma das boas lições a extrair disso tudo nos dão alguns países da América Latina: estão punindo vários dos assassinos e torturadores. Outra lição importante é perceber que eles são responsáveis pelo ato da tortura e do assassinato, mas que seus mandantes, os do  grande capital, ainda estão no poder e precisam, uma hora dessas, serem derrubados.