Artigo sobre o bicentenário da Independência do Brasil

Abaixo segue o link para acesso a um artigo meu, publicado no último número da Revista Princípios, cujo tema central é o bicentenário da Independência do Brasil.

 O artigo tem como objetivo expor uma reflexão sobre os limites da independência do Brasil a partir das definições e contribuições dos clássicos do materialismo histórico. O título completo é: “O bicentenário da Independência: os comunistas, a luta de classes e a questão nacional”.

Segue o link e fico à disposição para os debates.

https://revistaprincipios.emnuvens.com.br/principios/article/view/206

O Conto da Aia e o canto dos Malafaia

Cesar Mangolin

Esclareçamos, primeiro, o título.

O sobrenome da figura abjeta aparece aqui somente para tornar o título uma rima infeliz. Mais nada. Na verdade, mais tudo: a figura representa o conjunto dos chamados “pastores” das igrejas, mas inclui também os padres católicos e afins. Com algumas exceções, essas figuras assumiram a linha de frente da representação do que, desde 2013, se tem chamado de “gente de bem”: aqueles que conciliam, com tranquilidade, caridade, pagamento de impostos (nem sempre, vide o “véio” da Havan), preconceito e chacina.

Já a série e o livro que são traduzidos como O conto da Aia, para quem não conhece, se passa em um país (chamado Gilead) que teria sido resultado de uma divisão dos EUA após uma revolução conservadora, organizada por um grupo religioso. É uma teocracia: tudo se explica e justifica a partir da Bílblia e de uma moral religiosa. As mulheres são submetidas aos homens e não podem nem mesmo ler e escrever. Há as esposas dos comandantes (que formam a elite do país), as tias (que controlam as aias), as Martas (escravas domésticas de serviços gerais), as esposas de trabalhadores, as que são obrigadas a se prostituírem, as que são mandadas aos campos de trabalho forçado e as aias. Estas últimas são estupradas mensalmente pelos comandantes, supostamente para gerarem filhos, com o auxílio das esposas. A sociedade em que viviam padecia da baixa taxa de natalidade, daí a “santa” ideia de utilizar mulheres aparentemente transgressoras das leis impostas como reprodutoras. Há um ritual religioso, baseado numa passagem bíblica que orienta um homem a “tomar” outra mulher para gerar um filho, visto que a “sua” era infértil. Tanto na Bíblia quanto na série, as mulheres são coisas submetidas aos interesses dos homens e essa é a única razão de existirem. As que engravidam têm os filhos arrancados após a amamentação, que se tornam filhos oficiais do comandante e da sua esposa. Qualquer ação contraceptiva, abortiva ou que possa afetar uma criança ou uma mulher grávida é considerada um crime grave.

Mas qual relação entre a série e os condutores dos rebanhos cristãos do Brasil? Muitas, mas destaco dois aspectos apenas, ficando a possibilidade de explorarmos mais essas similaridades em outras ocasiões.

Primeiro, e como expressão mais pura da Jesulândia, as relações sociais baseadas nos preceitos religiosos que, de um lado, dão um tom sacrossanto para todos os ambientes e, ao mesmo tempo, promovem uma violência bestial, direta e simbólica, constantemente. Na série, as pessoas se cumprimentam com saudações que fazem alusão ao divino (“abençoado dia”; “sob o olhar dele”), andam e se vestem de acordo com as normas religiosas e, ao mesmo tempo, passam por fileiras de pessoas enforcadas em praça pública, são vigiadas constantemente e observam espancamentos, assassinatos, sequestros etc. Mas a moral religiosa é a que justifica essas violências todas: são os infiéis, pecadores, dissidentes. E quem é o pecador para os religiosos, aquele que precisa ser respeitado ou, pela visão deles, ser resgatado, amado, auxiliado, orientado? Claro que não! Assim como no nosso e em qualquer tempo, o pecador é aquele que merece sofrer essas violências todas. Cumprindo dupla tarefa ao mesmo tempo, a violência sofrida pelo “infiel” é culpa dele mesmo e prova de como a vida “longe do senhor” pode ser ruim. Ora, não vemos nossos religiosos fazerem isso o tempo todo hoje?

Aliás, há os que questionam como podem os cristãos andarem de braços com o bolsonarismo e fazerem “arminha” com as mãos dentro das igrejas, defenderem esse governo em tudo imoral, violento e antipopular. Alguns dizem que haveria alguma incoerência nisso: não há! Insisto que as exceções são aqueles que professam a fé cristã e mantêm valores associados à justiça, à igualdade, ao respeito pela vida e pelo meio do qual fazemos parte. Como regra, o cristianismo, desde que se romanizou, tornou-se sinônimo de violência e sua história foi escrita com letras de sangue inocente. Isso nos remete ao segundo aspecto.

Num dado episódio da série, uma aia, que representa as que tentam se organizar e combater a ditadura religiosa, conversa com um comandante dissidente. Ela fala da certeza de que sua filha (tomada dela e adotada por uma família) não sofreria nenhuma violência, porque os valores de Gilead não permitiriam que fizessem mal a uma criança, ao que o comandante responde, mais ou menos assim: “Nunca a questão foi deus ou as crianças: sempre foi o poder!” E é bem isso: os líderes religiosos que ecoam as violências do nosso tempo, o moralismo, o combate à ciência, a propagação de mentiras, sabem muito bem manter o seu “rebanho” submisso, iludido com suas falsas promessas, alimentado em suas perversidades similares às dos pastores, não porque a sua mensagem seja de fé ou esperança em nada de bom ou coletivamente melhor: é o poder e a riqueza que estão em jogo. Foi sempre assim, desde Roma. É o discurso religioso adaptado às representações deformadas da realidade, respaldando com o recurso ao divino as aspirações mais egoístas e abjetas.

E não é um problema apenas dos cristãos: qualquer religião acaba assumindo o mesmo papel de fazer parte da estrutura de poder de sociedades baseadas na exploração do humano sobre o humano e estará sempre ao lado dos poderes estabelecidos, mesmo que sejam os mais nocivos e sanguinários. Para exemplos recentes, lembremos das igrejas cristãs e das ditaduras na América Latina; da relação entre cristãos e o nazifascismo; na guerra civil da Espanha e na ditadura de Franco, de Salazar etc.

Um aluno recentemente me falou: “mas se não tivéssemos a religião, o mundo seria só mentira e violência!” Besteira: a religião contribui para alimentar um mundo violento e mentiroso. Ela é parte disso e instrumento de violência, enganação, entorpecimento, estupidez. Um aparelho da nossa ordem perversa. Já estamos, de alguma maneira, em Gilead. Lá temos os contos da aia, aqui os cantos da morte dos Malafaia, Valdomiro, Macedo et caterva.

Por aqui, tudo vai mais ou menos mal. Mas já basta.

Não parece que a felicidade seja algo que encontramos com facilidade pelas ruas nos nossos dias. Ainda que tenhamos pequenos momentos de alegria, causados por alguma boa notícia, eles são efêmeros e se dissipam no ar quase imediatamente. Por duas razões.

Primeiro, porque as boas notícias, quando ocorrem, têm sido apenas suspiros para aqueles que andam sufocados: uma possibilidade de emprego, um dinheirinho a mais, algo que era necessário para manter a vida com o mínimo de dignidade e foi conquistado, o amigo ou parente que escapou do genocídio da pandemia, da violência urbana, da violência do Estado… Notícias assim causam alguma alegria, sem dúvida. Mas rapidamente se tornam amargura ou resignação triste, exatamente por corresponderem apenas ao que deveríamos considerar o básico, o óbvio, mas que se tornou a exceção.

A segunda razão da nossa tristeza é coletiva: mesmo que uma ou outra notícia possa nos alegrar, parece impossível a felicidade no meio de tanta violência de todos os tipos. Não parece razoável que as pessoas estejam felizes e, ao mesmo tempo, convivam com os preconceitos propagados pelos quatro cantos; não parece razoável estar feliz fazendo ou assistindo aqueles que fazem a “arminha” com a mão; convivendo com a pregação constante do ódio, com a apologia da tortura, do assassinato, da ditadura; numa expressão mais breve, não parece possível ser feliz no retrocesso civilizacional pelo qual passamos.

E qual a saída para isso? Não há saída miraculosa. Aliás, por falar em milagre, não custa lembrar que as religiões no conjunto, mas, em particular, o cristianismo, têm se esmerado em demonstrar o quão distantes estão de qualquer coisa que lembre felicidade. De qualquer maneira, um ponto positivo desse tempo obscuro é que muitas instituições têm se mostrado exatamente como são: as igrejas, as forças armadas… Que não se perca essa memória. Como disse Vandré, vamos fazendo as contas para o dia que vai chegar!

A saída exige um novo ciclo, em direção à uma nova formação social, baseada em relações sociais de tipo novo. Somente isso é saída de fato. O resto é paliativo. Mas, já que é sempre necessário nesses tempos dizer o óbvio, os paliativos podem ser necessários para aplainar o caminho para soluções mais perenes.

Por ora, é preciso garantir o estancamento do nosso retrocesso civilizacional, numa ampla frente capaz de resgatar a dignidade da vida, materialmente e politicamente, ou seja, garantir alimento, moradia e alguma proteção àqueles que voltaram a engrossar a fila dos miseráveis, mas também combater decididamente o irracionalismo e a fascistização do país.

É possível deixarmos essa fase mais estúpida para trás. É possível não morrermos também neste ano, mais uma vez, como o “Sujeito de Sorte”, de Belchior.

Vídeo: Justiça, na Ética de Epicuro

Envio abaixo o link para o novo vídeo dos debates sobre a Ética, de Epicuro. O tema desta vez foi a JUSTIÇA. É bastante interessante e polêmico o tema, por isso, o vídeo ficou um tanto quanto mais longo que os demais. Mas, aos que tiverem a devida paciência, recomendo assistirem até o final e participarem dos debates pelo canal do youtube mesmo ou pela página “Grupo de Estudos e Leitura”, que criamos no facebook.

A tentativa foi a de trazer o tema para a reflexão de problemas que vivemos hoje e, claro, tornou-se impossível não comentar um tanto as maluquices que temos vivido nos últimos tempos no Brasil e a perseguição aos professores e universidades que ainda ousam pensar.

Vamos ao debate.

Segue o link:

Vídeo:Riqueza e bens materiais – Ética de Epicuro

Aos que se interessarem, segue o link com o terceiro tema dos estudos sobre a Ética, de Epicuro. Vocês podem receber diretamente os vídeos se inscrevendo no canal ou pela página “Grupo de Estudos e Leitura”, criada no Facebook.
TEMA 3: RIQUEZA E BENS MATERIAIS – ÉTICA DE EPICURO Vídeo do grupo de estudos e leitura da Ética, de Epicuro. O vídeo está incompleto, mas em lugar de editá-lo preferimos que as considerações finais sejam também alvo dos debates.

Artigo sobre o “Materialismo do encontro”, de Louis Althusser.

Postei na página deste blog “Textos Mangolin” e envio por aqui o link para os interessados de um artigo meu que foi publicado no número 46 da Revista Crítica Marxista, refletindo sobre o chamado “materialismo do encontro”, de Louis Althusser.

Abaixo segue o link e a introdução do artigo para que saibam do que o texto trata e como um convite à leitura e à crítica.

Link do blog:

Clique para acessar o mangolin-cesar-althusser-e-o-materialismo-do-encontro-continuidade-complementaridade-ou-ruptura.pdf

Link da Revista Crítica Marxista:

Clique para acessar o artigo2018_11_04_15_06_44.pdf

Introdução

Louis Althusser escreveu alguns textos na década de 1980 nos quais apresenta e defende uma corrente que ele mesmo chama de materialismo aleatório ou materialismo do encontro. Podemos encontrar três posições sobre a relação entre a obra desta última fase (a da década de 1980) e a obra anterior (os escritos das décadas de 1960 e 1970): a primeira é a compreensão de que ambas as fases se complementam; a segunda é aquela que percebe apenas uma continuidade, dado que a tese da última fase, segundo a qual a história é sinônimo de contingência, apareceria em toda sua obra; por fim, a terceira posição compreende que há uma ruptura entre os dois momentos, não sendo possível pensá-lo como continuidade ou complementaridade, visto que há referenciais teóricos e problemáticas distintas e, portanto, teses diferentes.

Esta última compreensão é a que pretendemos defender em nosso artigo.

Para tanto, dividimos o texto em três partes: na primeira e segunda tomaremos o exemplo de dois autores cujos argumentos permitem defender, respectivamente, a perspectiva da continuidade e da complementaridade, para, na terceira parte, melhor situar nossa posição com relação à contribuição do filósofo francês e argumentar em favor da ruptura entre os dois momentos.

 

Alguém foi enganado?

Cesar Mangolin

Tenho visto muita gente defender que não devemos criticar e nem atribuir a responsabilidade da eleição do Bolsonazi aos que votaram nele. No geral, a ideia é que seus eleitores devem ser “acolhidos”, como se fossem grupos de inocentes enganados e a responsabilidade deve ser dividida entre os partícipes do golpe de 2013-16 (as interferências e interesses externos, os partidos – PSDB em particular – derrotados sucessivamente nas eleições, os nossos “ladrões de galinha” da política institucional e frações da burguesia preteridas – mas jamais deixadas de lado – com o amparo precioso dos seus cães de guarda da pequena burguesia, alimentados pelos meios de comunicação de massa e pela partidarização do judiciário).

Eu discordo dessa avaliação sobre os eleitores do novo presidente, mas entendo que os que a defendem não procuram uma facilitação: partem da constatação de que uma considerável parcela de eleitores que votou em Lula e em Dilma pode ter votado no fascismo agora. Digo “pode” porque não tenho dados objetivos sobre o tema e nem saberia como tornar isso possível: o número de abstenções, votos nulos e brancos é grande. Mas, sem dúvida, isso ocorreu. Mas discordo, primeiro, por uma razão óbvia: a eleição do novo presidente não foi uma proclamação divina anunciada pelo anjo Gabriel, informando a todos que nossa história estava a dar vida aos ovos do fascismo, chocados ao longo desses anos. O resultado da eleição foi anunciado pelo TSE, depois de apurados em favor do infeliz mais de 57 milhões de votos. Enfim, o dado óbvio é que esse povo saiu de suas casas e foi até a urna votar, livremente. Segundo, sem deixar de lado o consórcio golpista mencionado acima que, de fato, cumpriu um papel fundamental, onde estaria o engodo que traiçoeiramente convenceu esses milhões de eleitores?

Penso que podemos falar de um engano quando fazemos algo com um objetivo e, depois, vemos que fomos iludidos, ou que as promessas feitas não foram cumpridas, ou que as cartas do jogo não estavam na mesa claramente. Mas não foi também esse o caso, ainda que as promessas feitas possam frustrar uma porção dos eleitores, afinal não sabemos ainda como esse governo caminhará.

Repetido como uma ladainha, o discurso moralista que justificou a opção dos eleitores possui como pontos chave a defesa da “família tradicional”, as referências ao cristianismo, o combate à corrupção e à criminalidade, o patriotismo e erigiu um grande inimigo: o PT e uma dada concepção pejorativa de “esquerda” e outros grupos específicos que teriam “destruído o Brasil”, tratados homogeneamente, ou seja, como se fossem todos a mesma coisa e uma ameaça a ser destruída. A ideia de que a candidatura do nosso tosco fascistoide representava a “mudança” foi calcada nessas bases.

Mas é necessário fazermos a devida separação entre o discurso – entre o que afirmam – e as intenções e objetivos subjacentes à forma do discurso, ou seja, o que de fato explica o evento desse apoio massivo.

Penso que não é preciso ser cientista político para afirmar que todos sabiam que as bases desse discurso são falsas. Em outras palavras: esse discurso apenas escondia velhos preconceitos e velhas disposições de classe da formação social brasileira, que voltam à tona sempre que temos alguns avanços e em momentos de crise (na nossa conjuntura, uma crise econômica, mas fundamentalmente uma crise política e institucional, forjada para impedir novas e sucessivas derrotas). Que temas sensíveis (como o da segurança pública) expandam para além das camadas mais abastadas e da pequena burguesia o apoio à guinada a direita, não há dúvida, somando a isso certa disposição à subserviência e a um discurso que vai contra sua própria condição, que pode ser observada em alguns espaços. Mas, ainda assim, não havia ninguém enganado aí.

Que podemos até operar com a ideia de que isso não aparecia de maneira racionalizada ou refletida para toda a massa de eleitores, não tenho dúvida. Mas como alegar que qualquer um deles não sabia que fazia apenas um discurso parcial, ou fazia “vista grossa”, estando todas as peças expostas amplamente? Como não reconhecer que a defesa violenta e visceral do candidato da suposta “mudança” escondia inconfessáveis (mas claros) e questionáveis valores?

Exemplos da incoerência entre os elementos desse discurso (que mencionei mais acima) e as disposições reais e objetivas não faltam. Estiveram e estão muito claros e amplamente divulgados:

1) o moralismo, o cristianismo e a família tradicional: são muitos os vídeos em que o candidato aparece dizendo que utilizava apartamento funcional para “comer gente”; os eleitores da “moral” comemoraram meses antes a injusta prisão de Lula bebendo cerveja paga por um cafetão e em frente a um conhecido puteiro paulistano de elite; Alexandre Frota, um ator de filmes pornográficos e que confessou e relatou em cadeia nacional um estupro esteve por ali o tempo todo e foi eleito deputado federal; pastores investigados por corrupção e até por estupro “oraram” pelo candidato; o candidato ganhou fama por um discurso rasteiro e cheio de violência; há vídeos diversos como o “não te estupro porque não merece”, “vamos fuzilar a petralhada”, “vamos banir e prender os vermelhos”. Fora as manifestações explícitas de racismo, homofobia e machismo em vídeos incontáveis do próprio candidato, dos seus parentes e dos seus seguidores. Ora, como o discurso moralista e supostamente cristão pode ter servido de base com todas essas evidências?

2) o combate à corrupção e o problema da segurança: é de fazer rir quando vem de alguém que ficou por mais de 20 anos no partido de Paulo Maluf e quando são observados os que o cercam e apoiam. Alguns serão ministros agora. Lorenzoni, por exemplo, é confesso e não foi um anúncio posterior à eleição. As condições da segurança pública no Rio de Janeiro e a atuação do deputado por essas duas décadas e meia indicam como ele desdenhou o problema e jamais deu atenção a ele. O discurso de direito ao porte de arma não é bem vindo aos que pensam a segurança como problema público e contraria todos os dados estatísticos, inclusive os comparados com outros países. Fora isso, todos sabem que o “bandido bom é bandido morto” se refere a matar os bandidos (ou não) pobres e preferencialmente pretos, dando à polícia liberdade para matar sem constrangimento.

3) Patriotismo e o “Brasil acima de tudo” com vídeos anunciando a entrega da Amazônia, das riquezas nacionais, batendo continência para estadunidenses. Imaginem um vídeo de Lula, ou Haddad, ou Manuela, batendo continência para uma bandeira qualquer, a estadunidense ou a cubana, por exemplo? A falsidade do discurso está exatamente na previsível reação raivosa do segundo exemplo e na justificativa do primeiro como algo razoável.

4) a esquerda como o mal que destruiu o Brasil: TODOS os trabalhadores brasileiros sabem que particularmente nos dois mandatos de Lula o país esteve muito bem, aliás, melhor que em qualquer momento. Ninguém nega isso. Nem os dados estatísticos, o mapa da fome da ONU, o FMI… De onde vem e como sustentar o argumento da destruição do Brasil? Outra coisa que todo brasileiro sabe desde criança é que a corrupção, o “jeitinho”, o “levar vantagem” são marcas não só da política institucional, mas parte integrante das relações cotidianas. Sabe, inclusive, que não é uma marca exclusiva do PT (o que não justifica, obviamente, nenhum tipo de atenuação dos casos comprovados). E, mais importante, teve dados disponíveis, escritos, desenhados, em áudio, vídeo, tabelas, gráficos, demonstrando historicamente a participação dos partidos na corrupção e, inclusive, demonstrando que os envolvidos em casos de corrupção na atualidade estão em massa exatamente do lado do novo presidente.

5) o ataque a negros, gays, mulheres, aos mais empobrecidos, aos indígenas, a xenofobia: isso ocorreu sistematicamente, o tempo todo e, em lugar de pelo menos preocupar, empolgou as multidões.

6) a mudança: como alguém pode levar a sério que esse sujeito representa alguma mudança? Ele não conhece além de algumas frases violentas e do senso comum, não é capaz de debater suas propostas e, fundamentalmente, é um sujeito que está há quase três décadas como um parasita no Congresso Nacional, votando em tudo que contraria os interesses dos trabalhadores e as melhorias de condições de vida dos brasileiros. Ao longo da campanha disse abertamente que acabaria com conquistas dos trabalhadores; seu vice afirmou mais de uma vez que acabaria com o décimo terceiro e com as férias; prometeu aprovar a reforma da previdência que penaliza trabalhadores; defendeu que mulheres devem ganhar menos; defendeu abertamente a tortura e a ditadura, o assassinato, a prisão arbitrária.

Como algo tão velho e rançoso pode aparecer para alguém como símbolo da mudança? Não, todos sabiam que não era isso. Não parece ser possível que alguém tenha sido enganado com tantos dados escancarados. Quem votou no sujeito sabia o que estava fazendo e comemorou a eleição. Muitos descarregando suas armas para o alto.

Ora, se estava tudo tão escancarado, se era perceptível a todos, o que ocorreu então? Penso que uma das respostas está nos preconceitos historicamente enraizados no imaginário geral e que faz parte da formação social brasileira. Uma ideologia do colonialismo, como chamava Nelson Werneck Sodré, que trata parcelas da população como desiguais ou que percebe desigualdades perigosas nas diferenças. Não acredito que todos os eleitores do sujeito estejam decididos a praticar violência direta contra qualquer grupo, mas eles querem que esses grupos tomados como inferiores retornem aos seus lugares sociais e ao silêncio.

Entendo nossa virada à direita, para além dos estímulos externos, como uma reação a avanços que tivemos nos últimos anos e que deram lugar e voz a esses grupos postos à margem e condenados à clandestinidade. Mulheres, gays, negros, pobres são tolerados, desde que não ousem desejar serem iguais, desde que fiquem em seus porões e ocupem as funções sociais historicamente destinadas a eles. As mulheres “recatadas e do lar”, os gays de vida enrustida, os negros e pobres trabalhando e dividindo as posições mais mal remuneradas da divisão do trabalho.

Nossos setores dominantes sabem compatibilizar caridade e chacina com muita tranquilidade. Uma ajudinha aqui para ganhar pontos no céu e manter os pobres submissos e agradecidos, uns tiros ali para não perder o controle da situação. A pequena burguesia é seu cão de guarda e rosna primeiro porque se sente ameaçada nos seus lugares sociais e é mais sensível à aproximação desses setores que podem alçar posições sociais equivalentes às dela. Em momentos de avanço como esse que antecedeu o golpe, de conquistas sociais, se acirram as disputas pelos espaços, ainda mais quando uma crise econômica auxilia ampliando seus efeitos. Chega a hora de “recoloca-los nos seus lugares”.

Nossa pequena burguesia (com maior ou menor intensidade, de acordo com os interesses mais diretos das suas frações), sem dúvida, jamais toleraria viajar em aviões ao lado de pobres e pretos por muito tempo. Mas o que a coloca em movimento reativo mais explícito é o risco que representa a possibilidade do acesso proletário aos seus canais de manutenção e ascensão, como a existência de políticas públicas que dão incentivos e subsidiam atividades de pequenos e médios produtores, políticas afirmativas e compensatórias, como as cotas sociais e étnicas, acesso ao crédito e ao consumo, ampliação das conquistas e direitos dos trabalhadores que ainda viviam os resquícios da senzala, como foi o caso do trabalho doméstico, a elevação da certificação escolar e do ensino superior nos últimos anos e a maior disponibilidade de trabalhadores para as atividades não manuais.  Nesse caso, a pequena burguesia, que se justifica pela ideologia do mérito pessoal e pela certificação escolar, se sente ameaçada pelos efeitos tendenciais do que chamamos de sobrecertificação: quanto mais temos concentração urbana com certificação da educação básica e também do ensino superior, mais as empresas podem elevar os requisitos para contratação de pessoal, inclusive com salários menores e maiores atribuições. O problema da certificação escolar não é o da qualificação do pessoal, mas o de agregar um grande número de novos concorrentes em condições legalmente ou formalmente iguais (a posse do diploma), quebrando o principal instrumento de justificativa da manutenção da pequena burguesia urbana desde o final dos anos 1960 no Brasil.

Um olhar um pouco mais atento pode ajudar a compreender nossa conjuntura como  uma reação a esses avanços sociais, respaldada pelos preconceitos construídos historicamente que alocam, como desiguais, grupos diferentes da população brasileira. Eles votaram em Lula duas vezes e muitos elegeram Dilma. Eles votaram em Lula em vista da grave crise do começo dos anos 2000 e depois dos governos de Collor-Itamar e FHC, de aplicação da cartilha do neoliberalismo. A reação se expressou nos movimentos de 2013 e na apertada vitória de Dilma contra Aécio em 2014. Depois, com as sucessivas derrotas nas urnas e a expectativa de uma nova eleição petista em 2018, novamente com Lula à frente, a reação veio na forma do golpe de 2016. A ideia era passar o comando da nação para as mãos do PSDB (o operador político de confiança do grande capital), uma vez que não conseguia fazê-lo pela via eleitoral.

Mas o golpe saiu pela culatra: o grande derrotado dessas eleições foi o próprio PSDB. O aguçamento do discurso moralista e sabidamente falso levou à presidência um efeito colateral do golpe: Bolsonaro. Nem ele mesmo deve conseguir entender até agora como, de um militar equivocado e de um parlamentar medíocre, pôde sair um presidente da República.

 

Novo artigo

Sugiro a leitura do artigo publicado na Revista Reflexões neste semestre com o título “Imigração e Xenofobia: reflexões a partir de uma perspectiva política e filosófica”. Trata-se do tratamento (ainda provisório e introdutório) desses temas, que têm me direcionado para os estudos do que poderíamos chamar de uma “ideologia do colonialismo”, que poderá ajudar a pensar e compreender, retomando autores importantes como Nelson Werneck Sodré e Fanon, a própria realidade brasileira. Em breve aparecerão mais resultados do trabalho!!!

Seguem os links e o resumo como publicado>

no blog: https://cesarmangolin.wordpress.com/wp-content/uploads/2018/08/14-1-2-cesar-unicamp.pdf

na revista: http://revistareflexoes.com.br/artigos/imigracao-e-xenofobia-reflexao-numa-perspectiva-politica-e-filosofica/

Resumo: O objetivo do texto é fazer uma reflexão sobre os temas da imigração e da xenofobia destacando aspectos antropológicos, políticos e filosóficos. A ascensão ou fortalecimento em nossa conjuntura de movimentos ultranacionalistas no campo político da direita e que se reivindicam, em alguns casos, como neonazistas justificam a relevância do tema para a atualidade. Mas o artigo não pretende tratar de algum caso específico: a intenção principal é apontar elementos iniciais e gerais, porém fundamentais para uma reflexão posterior de maior profundidade. Para tanto, o texto está dividido em duas partes: a primeira conceitua imigração e xenofobia a partir da etimologia dos termos para, em seguida, refletir sobre o deslocamento no espaço como condição animal e as especificidades humanas, que explicam as bases do que concebemos como xenofobia; a segunda parte está destinada a uma reflexão, utilizando o exemplo de Aristóteles em suas obras Política e na Ética a Nicômaco , que percebe na tradição filosófica tendências ao tratamento das diferenças étnicas e culturais como elementos fundantes de desigualdades sociais, justificando ou velando a dominação entre povos e culturas distintos.

Palavras-chave: Ideologia – Imigração – Política – Xenofobia.

O pastorzinho e seu rebanho de braços dados com o fascismo cotidiano.

Cesar Mangolin

Escrevi um pequeno texto e publiquei por aqui faz algum tempo. Alguns anos, aliás. O título era “O infeliz Feliciano não fala ao vento”. Replico alguns trechos daquele texto aqui. Naquela ocasião o infeliz havia tentado justificar a suposta inferioridade dos negros e do continente africano (!) a partir de uma passagem bíblica, que indicava que deus os havia amaldiçoado. O sujeito é bom em falar besteira e propagar violência: disse coisas similares sobre homossexuais, sobre portadores de HIV, sobre as mulheres. Nesta semana, o infeliz pastor de asininos chamado Feliciano, que é deputado federal, acusado de estupro, de inteligência questionável e de valores reprováveis voltou à carga, fazendo gracejos com a execução da vereadora do PSOL do Rio de Janeiro e com os que militam à esquerda.

É sempre de lamentar qualquer pessoa que comemore ou faça graça com a morte de alguém. Principalmente nas condições e pelas patentes motivações da execução da vereadora. De lamentar mais ainda são aqueles que se apressaram a publicar uma série de informações mentirosas sobre a vereadora Marielle Franco, como se justificassem a sua morte. Mesmo que todas as mentiras publicadas fossem verdade, ainda assim, comemorar ou justificar a morte de alguém e naquelas condições é algo que revela caráter duvidoso, valores rebaixados e uma violência ilimitada.

Claro que essa violência partiu de mais gente e não apenas dessa parcela de cristãos estúpidos que segue gente como esse pastor e que consegue conciliar cristianismo, safadeza e violência que faria inveja a qualquer membro da família do papa Alexandre VI, o Bórgia. Disposição, aliás, que coloca cristãos ao lado do que há de mais reacionário, antipopular e violento no país, como a síntese da estupidez personificada no nazi-cristão Bolsonaro (não esqueçam que ele foi batizado pelo também pastor – e ex-candidato à presidência – Everaldo nas águas do Rio Jordão!). Não é por acaso que seu candidato a vice já foi escolhido dentre eles: um pastor selecionado num chiqueiro repleto de outros pastores imbecis tanto quanto o cabeça de chapa e seus seguidores.

Há, sem dúvida, uma confluência ideológica entre os nossos neofascistas e uma parcela dos cristãos, assim como dentre uma considerável parcela da pequena burguesia, que serve de base social ao retrocesso que vivemos.

Como escrevi na primeira oportunidade, o que chama mais a atenção é que o tal pastor não fala ao vento: fala para um rebanho que parece ser tristemente grande. Ele foi feito deputado com alguns milhares de votos; tem seus fiéis; representa não apenas a si próprio ou a uma pequena comunidade, mas faz coro com milhões de vozes, de outros tantos pastores e seguidores cegos de uma fé estúpida, porque preconceituosa, excludente e baseada em preceitos questionáveis. O pastor não fala ao vento porque é expressão de uma parcela considerável de brasileiros, cristãos ou não, que vêm os negros e homossexuais como excrescências,  assim como vêm os mais pobres como “gente diferenciada” e, fundamentalmente, levam ao extremo uma violência dirigida contra os mais pobres, mais vulneráveis socialmente e contra aqueles que se levantam e lutam contra as desigualdades que vivemos.

Eu estou convencido que é um traço cultural nosso, herança ainda da nossa formação colonial e replicada e ajustada às transformações pelas quais o país passou nesses cinco séculos. Um traço característico de uma formação realizada em todos os sentidos através da violência e da exploração bestial de vastos contingentes da população. E não é somente violência direta e explícita. É também o que nos faz permissivos com os mais ricos e implacáveis com os mais pobres; é o que faz considerar com pesos distintos as ações que partem de classes distintas, que são praticadas por grupos mais ricos ou mais pobres: o uso de drogas pode ser glamouroso ou ser um vício detestável; a orientação sexual e as parcerias múltiplas podem ser festejadas ou reprovadas; mesmo a corrupção pode ser suportada ou considerada o mal do século.

Nosso país ainda é um país de miseráveis e pobres. Tanto no escravismo, quanto com o advento das incríveis oportunidades de diversificação da miséria trazidas pelo desenvolvimento capitalista, tratou-se de justificá-la atribuindo aos que padecem dela a responsabilidade. Mesmo dentre os que discordam do tal pastor de tolos há um grande contingente  que  faz o discurso liberal de que o acesso à educação resolveria esses problemas. Ora, isso nada mais é que atribuir a miséria à ignorância, portanto, a uma responsabilidade dos próprios miseráveis que poderiam ser salvos pelas palavras de um bom e bem intencionado professor que, no geral, pensa como um pequeno-burguês e está carcomido até às entranhas por esses preconceitos todos.

A pequena burguesia (ou a “classe média”), no seu combate intensivo aos programas sociais de distribuição de renda, costuma utilizar a frase do “Não dar o peixe, mas ensinar a pescar”. Novamente, por detrás da frase, temos a atribuição da responsabilidade da miséria à ignorância. Uma inversão comum, portanto, visto que a ignorância decorre da miséria, e não o contrário. Atribuir ao violentado a responsabilidade da violência que sofre é um recurso cotidiano das nossas relações. Triste exemplo são as violências de todo tipo contra as mulheres e as tentativas de justificá-las. Outro exemplo? Tente tratar do tema do racismo com qualquer grupo e conte no relógio: garanto que em menos de três minutos a frase “mas os negros são mais racistas”, a ideia do racismo reverso e a triste noção do suposto vitimismo aparecerão e embolarão o tema.

A ignorância não é propriedade privada dos miseráveis: a maior parte do povo brasileiro padece dela, mesmo os círculos intelectualizados, em todas as classes sociais. Isso não se resolve com educação formal. O que está enraizado secularmente no viver e no pensar não se resolve mudando apenas o pensar em um de seus níveis, como o acúmulo das informações recebidas por vias formais. Há um nível mais profundo do pensar, aquele que é determinado pela vida, que justifica o princípio da filosofia materialista que afirma que pensamos como vivemos. Sair da ignorância significa, portanto, mudar o viver, que muda o pensar.

Parece que a maioria das pessoas, embora tenham as informações necessárias que rompem com os preconceitos como os expressos pelo pastorzinho da vez, não é capaz de sintonizar a vida e o pensamento. Lá no fundo, determinados pela vida prática, balançam a cabeça como jumentos concordando com o pastor. Seu público é, infelizmente, muito maior do que se pensa.

Mas há um bom sinal nisso tudo: a radicalização do discurso desses líderes religiosos, políticos medíocres e movimentos de moleques fascistoides, escancarando seus preconceitos e informações falsas, leva a uma parcela considerável dos que ainda acreditam e replicam essas bobagens os elementos primeiros do rompimento, ainda confuso, com a moral de rebanho. O ápice do que foi construído sobre a mentira é também sinal do começo da queda.

Os que lutam como Marielle Franco pelo “belo, pelo justo e pelo melhor do mundo”, como escreveu Olga Benário, assistirão a derrota do pastor da vez e seus congêneres de um local privilegiado.