Cesar Mangolin
Tenho visto muita gente defender que não devemos criticar e nem atribuir a responsabilidade da eleição do Bolsonazi aos que votaram nele. No geral, a ideia é que seus eleitores devem ser “acolhidos”, como se fossem grupos de inocentes enganados e a responsabilidade deve ser dividida entre os partícipes do golpe de 2013-16 (as interferências e interesses externos, os partidos – PSDB em particular – derrotados sucessivamente nas eleições, os nossos “ladrões de galinha” da política institucional e frações da burguesia preteridas – mas jamais deixadas de lado – com o amparo precioso dos seus cães de guarda da pequena burguesia, alimentados pelos meios de comunicação de massa e pela partidarização do judiciário).
Eu discordo dessa avaliação sobre os eleitores do novo presidente, mas entendo que os que a defendem não procuram uma facilitação: partem da constatação de que uma considerável parcela de eleitores que votou em Lula e em Dilma pode ter votado no fascismo agora. Digo “pode” porque não tenho dados objetivos sobre o tema e nem saberia como tornar isso possível: o número de abstenções, votos nulos e brancos é grande. Mas, sem dúvida, isso ocorreu. Mas discordo, primeiro, por uma razão óbvia: a eleição do novo presidente não foi uma proclamação divina anunciada pelo anjo Gabriel, informando a todos que nossa história estava a dar vida aos ovos do fascismo, chocados ao longo desses anos. O resultado da eleição foi anunciado pelo TSE, depois de apurados em favor do infeliz mais de 57 milhões de votos. Enfim, o dado óbvio é que esse povo saiu de suas casas e foi até a urna votar, livremente. Segundo, sem deixar de lado o consórcio golpista mencionado acima que, de fato, cumpriu um papel fundamental, onde estaria o engodo que traiçoeiramente convenceu esses milhões de eleitores?
Penso que podemos falar de um engano quando fazemos algo com um objetivo e, depois, vemos que fomos iludidos, ou que as promessas feitas não foram cumpridas, ou que as cartas do jogo não estavam na mesa claramente. Mas não foi também esse o caso, ainda que as promessas feitas possam frustrar uma porção dos eleitores, afinal não sabemos ainda como esse governo caminhará.
Repetido como uma ladainha, o discurso moralista que justificou a opção dos eleitores possui como pontos chave a defesa da “família tradicional”, as referências ao cristianismo, o combate à corrupção e à criminalidade, o patriotismo e erigiu um grande inimigo: o PT e uma dada concepção pejorativa de “esquerda” e outros grupos específicos que teriam “destruído o Brasil”, tratados homogeneamente, ou seja, como se fossem todos a mesma coisa e uma ameaça a ser destruída. A ideia de que a candidatura do nosso tosco fascistoide representava a “mudança” foi calcada nessas bases.
Mas é necessário fazermos a devida separação entre o discurso – entre o que afirmam – e as intenções e objetivos subjacentes à forma do discurso, ou seja, o que de fato explica o evento desse apoio massivo.
Penso que não é preciso ser cientista político para afirmar que todos sabiam que as bases desse discurso são falsas. Em outras palavras: esse discurso apenas escondia velhos preconceitos e velhas disposições de classe da formação social brasileira, que voltam à tona sempre que temos alguns avanços e em momentos de crise (na nossa conjuntura, uma crise econômica, mas fundamentalmente uma crise política e institucional, forjada para impedir novas e sucessivas derrotas). Que temas sensíveis (como o da segurança pública) expandam para além das camadas mais abastadas e da pequena burguesia o apoio à guinada a direita, não há dúvida, somando a isso certa disposição à subserviência e a um discurso que vai contra sua própria condição, que pode ser observada em alguns espaços. Mas, ainda assim, não havia ninguém enganado aí.
Que podemos até operar com a ideia de que isso não aparecia de maneira racionalizada ou refletida para toda a massa de eleitores, não tenho dúvida. Mas como alegar que qualquer um deles não sabia que fazia apenas um discurso parcial, ou fazia “vista grossa”, estando todas as peças expostas amplamente? Como não reconhecer que a defesa violenta e visceral do candidato da suposta “mudança” escondia inconfessáveis (mas claros) e questionáveis valores?
Exemplos da incoerência entre os elementos desse discurso (que mencionei mais acima) e as disposições reais e objetivas não faltam. Estiveram e estão muito claros e amplamente divulgados:
1) o moralismo, o cristianismo e a família tradicional: são muitos os vídeos em que o candidato aparece dizendo que utilizava apartamento funcional para “comer gente”; os eleitores da “moral” comemoraram meses antes a injusta prisão de Lula bebendo cerveja paga por um cafetão e em frente a um conhecido puteiro paulistano de elite; Alexandre Frota, um ator de filmes pornográficos e que confessou e relatou em cadeia nacional um estupro esteve por ali o tempo todo e foi eleito deputado federal; pastores investigados por corrupção e até por estupro “oraram” pelo candidato; o candidato ganhou fama por um discurso rasteiro e cheio de violência; há vídeos diversos como o “não te estupro porque não merece”, “vamos fuzilar a petralhada”, “vamos banir e prender os vermelhos”. Fora as manifestações explícitas de racismo, homofobia e machismo em vídeos incontáveis do próprio candidato, dos seus parentes e dos seus seguidores. Ora, como o discurso moralista e supostamente cristão pode ter servido de base com todas essas evidências?
2) o combate à corrupção e o problema da segurança: é de fazer rir quando vem de alguém que ficou por mais de 20 anos no partido de Paulo Maluf e quando são observados os que o cercam e apoiam. Alguns serão ministros agora. Lorenzoni, por exemplo, é confesso e não foi um anúncio posterior à eleição. As condições da segurança pública no Rio de Janeiro e a atuação do deputado por essas duas décadas e meia indicam como ele desdenhou o problema e jamais deu atenção a ele. O discurso de direito ao porte de arma não é bem vindo aos que pensam a segurança como problema público e contraria todos os dados estatísticos, inclusive os comparados com outros países. Fora isso, todos sabem que o “bandido bom é bandido morto” se refere a matar os bandidos (ou não) pobres e preferencialmente pretos, dando à polícia liberdade para matar sem constrangimento.
3) Patriotismo e o “Brasil acima de tudo” com vídeos anunciando a entrega da Amazônia, das riquezas nacionais, batendo continência para estadunidenses. Imaginem um vídeo de Lula, ou Haddad, ou Manuela, batendo continência para uma bandeira qualquer, a estadunidense ou a cubana, por exemplo? A falsidade do discurso está exatamente na previsível reação raivosa do segundo exemplo e na justificativa do primeiro como algo razoável.
4) a esquerda como o mal que destruiu o Brasil: TODOS os trabalhadores brasileiros sabem que particularmente nos dois mandatos de Lula o país esteve muito bem, aliás, melhor que em qualquer momento. Ninguém nega isso. Nem os dados estatísticos, o mapa da fome da ONU, o FMI… De onde vem e como sustentar o argumento da destruição do Brasil? Outra coisa que todo brasileiro sabe desde criança é que a corrupção, o “jeitinho”, o “levar vantagem” são marcas não só da política institucional, mas parte integrante das relações cotidianas. Sabe, inclusive, que não é uma marca exclusiva do PT (o que não justifica, obviamente, nenhum tipo de atenuação dos casos comprovados). E, mais importante, teve dados disponíveis, escritos, desenhados, em áudio, vídeo, tabelas, gráficos, demonstrando historicamente a participação dos partidos na corrupção e, inclusive, demonstrando que os envolvidos em casos de corrupção na atualidade estão em massa exatamente do lado do novo presidente.
5) o ataque a negros, gays, mulheres, aos mais empobrecidos, aos indígenas, a xenofobia: isso ocorreu sistematicamente, o tempo todo e, em lugar de pelo menos preocupar, empolgou as multidões.
6) a mudança: como alguém pode levar a sério que esse sujeito representa alguma mudança? Ele não conhece além de algumas frases violentas e do senso comum, não é capaz de debater suas propostas e, fundamentalmente, é um sujeito que está há quase três décadas como um parasita no Congresso Nacional, votando em tudo que contraria os interesses dos trabalhadores e as melhorias de condições de vida dos brasileiros. Ao longo da campanha disse abertamente que acabaria com conquistas dos trabalhadores; seu vice afirmou mais de uma vez que acabaria com o décimo terceiro e com as férias; prometeu aprovar a reforma da previdência que penaliza trabalhadores; defendeu que mulheres devem ganhar menos; defendeu abertamente a tortura e a ditadura, o assassinato, a prisão arbitrária.
Como algo tão velho e rançoso pode aparecer para alguém como símbolo da mudança? Não, todos sabiam que não era isso. Não parece ser possível que alguém tenha sido enganado com tantos dados escancarados. Quem votou no sujeito sabia o que estava fazendo e comemorou a eleição. Muitos descarregando suas armas para o alto.
Ora, se estava tudo tão escancarado, se era perceptível a todos, o que ocorreu então? Penso que uma das respostas está nos preconceitos historicamente enraizados no imaginário geral e que faz parte da formação social brasileira. Uma ideologia do colonialismo, como chamava Nelson Werneck Sodré, que trata parcelas da população como desiguais ou que percebe desigualdades perigosas nas diferenças. Não acredito que todos os eleitores do sujeito estejam decididos a praticar violência direta contra qualquer grupo, mas eles querem que esses grupos tomados como inferiores retornem aos seus lugares sociais e ao silêncio.
Entendo nossa virada à direita, para além dos estímulos externos, como uma reação a avanços que tivemos nos últimos anos e que deram lugar e voz a esses grupos postos à margem e condenados à clandestinidade. Mulheres, gays, negros, pobres são tolerados, desde que não ousem desejar serem iguais, desde que fiquem em seus porões e ocupem as funções sociais historicamente destinadas a eles. As mulheres “recatadas e do lar”, os gays de vida enrustida, os negros e pobres trabalhando e dividindo as posições mais mal remuneradas da divisão do trabalho.
Nossos setores dominantes sabem compatibilizar caridade e chacina com muita tranquilidade. Uma ajudinha aqui para ganhar pontos no céu e manter os pobres submissos e agradecidos, uns tiros ali para não perder o controle da situação. A pequena burguesia é seu cão de guarda e rosna primeiro porque se sente ameaçada nos seus lugares sociais e é mais sensível à aproximação desses setores que podem alçar posições sociais equivalentes às dela. Em momentos de avanço como esse que antecedeu o golpe, de conquistas sociais, se acirram as disputas pelos espaços, ainda mais quando uma crise econômica auxilia ampliando seus efeitos. Chega a hora de “recoloca-los nos seus lugares”.
Nossa pequena burguesia (com maior ou menor intensidade, de acordo com os interesses mais diretos das suas frações), sem dúvida, jamais toleraria viajar em aviões ao lado de pobres e pretos por muito tempo. Mas o que a coloca em movimento reativo mais explícito é o risco que representa a possibilidade do acesso proletário aos seus canais de manutenção e ascensão, como a existência de políticas públicas que dão incentivos e subsidiam atividades de pequenos e médios produtores, políticas afirmativas e compensatórias, como as cotas sociais e étnicas, acesso ao crédito e ao consumo, ampliação das conquistas e direitos dos trabalhadores que ainda viviam os resquícios da senzala, como foi o caso do trabalho doméstico, a elevação da certificação escolar e do ensino superior nos últimos anos e a maior disponibilidade de trabalhadores para as atividades não manuais. Nesse caso, a pequena burguesia, que se justifica pela ideologia do mérito pessoal e pela certificação escolar, se sente ameaçada pelos efeitos tendenciais do que chamamos de sobrecertificação: quanto mais temos concentração urbana com certificação da educação básica e também do ensino superior, mais as empresas podem elevar os requisitos para contratação de pessoal, inclusive com salários menores e maiores atribuições. O problema da certificação escolar não é o da qualificação do pessoal, mas o de agregar um grande número de novos concorrentes em condições legalmente ou formalmente iguais (a posse do diploma), quebrando o principal instrumento de justificativa da manutenção da pequena burguesia urbana desde o final dos anos 1960 no Brasil.
Um olhar um pouco mais atento pode ajudar a compreender nossa conjuntura como uma reação a esses avanços sociais, respaldada pelos preconceitos construídos historicamente que alocam, como desiguais, grupos diferentes da população brasileira. Eles votaram em Lula duas vezes e muitos elegeram Dilma. Eles votaram em Lula em vista da grave crise do começo dos anos 2000 e depois dos governos de Collor-Itamar e FHC, de aplicação da cartilha do neoliberalismo. A reação se expressou nos movimentos de 2013 e na apertada vitória de Dilma contra Aécio em 2014. Depois, com as sucessivas derrotas nas urnas e a expectativa de uma nova eleição petista em 2018, novamente com Lula à frente, a reação veio na forma do golpe de 2016. A ideia era passar o comando da nação para as mãos do PSDB (o operador político de confiança do grande capital), uma vez que não conseguia fazê-lo pela via eleitoral.
Mas o golpe saiu pela culatra: o grande derrotado dessas eleições foi o próprio PSDB. O aguçamento do discurso moralista e sabidamente falso levou à presidência um efeito colateral do golpe: Bolsonaro. Nem ele mesmo deve conseguir entender até agora como, de um militar equivocado e de um parlamentar medíocre, pôde sair um presidente da República.