Os patrões, os trabalhadores e os “patos”.

Cesar Mangolin

É, sem dúvida, grave a situação do país por ocasião dos efeitos da greve dos caminhoneiros. Em um corpo que padece de males diversos qualquer constipação tende a ser a beira do abismo.

Longe de mim querer comparar a nossa formação social a um corpo e suas funções. Apenas utilizo a analogia ou a metáfora para colocar em evidência três elementos que me parecem explicar o alcance da crise para, depois, de maneira rápida, criticar determinadas “visões” da crise que beiram a histeria.

Primeiro, vivemos num país com um governo ilegítimo, fraco, impopular, produto de um golpe que buscou resolver pela força o que as forças atreladas aos interesses da alta finança e do capital estrangeiro (tendo como testa de ferro o PSDB) não conseguiram resolver eleitoralmente.

Segundo, esse governo não é continuidade de qualquer maneira do governo de Dilma, eleito pelo voto popular em 2014, ainda que o golpista de plantão fosse o vice daquele governo. Caso as “agendas” ou os programas de governo batessem, das duas uma: não seria necessário o golpe ou não seria Temer quem ocuparia a presidência. Decorre do primeiro ponto este segundo: a assim chamada agenda neoliberal foi assumida e aplicada por este governo, com pretensões de repassá-la (não sem resistências) adiante para aliados mais fiéis (o Geraldinho Picolé de Chuchu e o PSDB, as marionetes de confiança do grande capital).

Terceiro, a interação desses dois conjuntos pode explicar sinteticamente a crise: um governo impopular e ilegítimo, com alta rejeição nacional, que procura aplicar a toque de caixa medidas que revertam a política dos governos anteriores que buscavam conciliar crescimento econômico com desenvolvimento social. As consequências sociais são imensas e sentidas desde já: efeitos da reforma trabalhista, da ausência de investimentos em políticas públicas, eliminação ou drástica redução de programas sociais, aumento do desemprego, dos preços para o consumidor final, da entrega das riquezas e da soberania nacionais etc.. Ora, não deveria espantar ninguém que os efeitos de tais políticas antipopulares seriam sentidas desde já. Caso fosse para continuar como estava (e não era um paraíso!) não haveria razão para o golpe.

A Petrobras entrou no butim dos vencedores do golpe: embora o povão tenha sido convencido pela grande imprensa de que a Petrobras estava falida e muito (tonto) desinformado continue a dizer que a solução é privatizá-la de uma vez, o fato mesmo é que a empresa persistiu como uma das maiores do mundo e é alvo de interesses poderosíssimos. Aos poucos, ela vai sendo entregue às grandes corporações do petróleo. Os royalties do pré-sal não serão mais aplicados integralmente à saúde e educação (medida aprovada no governo Dilma e eliminada como uma das primeiras medidas do governo golpista). A entrega da Petrobras e a nova política de preços dos combustíveis (implementada por Pedro Parente, um quadro do tucanato) passa a ter como prioridade os interesses dos acionistas, a relação com as “concessionárias” e as grandes corporações. O preço dos combustíveis passa a depender do preço internacional do barril do petróleo e da taxa de câmbio. A desvalorização do real em relação ao dólar também faz com que os preços subam constantemente.

Esses aumentos sucessivos vão pesar no bolso de todos os trabalhadores brasileiros, mas prejudicam aqueles que vivem dos transportes por causa da soma das condições. AQUI ENTRAM OS CAMINHONEIROS. Além do aumento do preço do diesel, houve aumento dos pedágios, dos pneus, das autopeças, dos alimentos e, ao mesmo tempo, uma pressão constante sobre o valor dos fretes. Chamo de caminhoneiros três grupos: primeiro, o daqueles sujeitos que possuem um caminhão e ficam na condição do que costumam chamar de “agregados” de empresas. Eles são, no geral, dependentes diretamente de uma ou no máximo duas empresas, têm destinos e agendas definidos pelas empresas, tempo de viagem determinado pelas empresas. Em tudo, portanto, figuram na prática como empregados dessas empresas, menos num detalhe: o instrumento fundamental de trabalho é de sua propriedade, portanto, os custos da viagem e da manutenção saem do valor recebido pelo frete. O segundo grupo, mais precarizado, é o de motoristas que trabalham com caminhão alheio e continuam a receber pelo valor do frete, com os descontos dos custos da viagem (combustível, alimentação, pedágios) e mais o desconto do percentual pago ao dono do caminhão (seja uma empresa ou uma pessoa física). Por fim, há motoristas de caminhão contratados, cada vez mais raros, que recebem salários.

Vejam: é para esses dois primeiros grupos que o preço do combustível, dos pedágios e demais necessidades fala alto. Num dado ponto de esgarçamento das suas condições, encontram na paralisação das atividades um argumento poderoso. Para os motoristas de caminhão contratados, assim como para motoristas de ônibus, o preço do diesel, dos pedágios, das passagens interessa muito pouco. Mas é claro que parar de trabalhar pode gerar uma melhora nas condições dos dois primeiros grupos no curto prazo, mas também prejudica imediatamente, visto que ganham por fazerem muitas, cada mais rápidas e arriscadas viagens cortando o país.

Aqui entra o segundo grupo interessado no processo: o dos empresários das transportadoras, que procura na situação de crise arrancar vantagens de um governo moribundo, ilegítimo e irresponsável (porque deixou a “corda” esticar para além do possível), como a redução de impostos que afetam seus lucros mais diretamente e em nada tem relação necessariamente com a melhora do valor dos fretes (que tende a ser arrochado), assim como a redução dos impostos de qualquer produto apenas pode fazer aumentar a lucratividade de um dado setor e não a redução dos preços para o consumidor.

A atual greve dos caminhoneiros tem, sem dúvida, grupos e interesses difusos que se beneficiam mutuamente. A participação dos empresários, de um lado, favorece ou facilita a adesão dos caminhoneiros. De outro lado, a luta dos caminhoneiros (legítima e compreensível) dá base social e política para os empresários. Talvez um e outro não fariam sozinhos o que acabaram fazendo juntos. Não é, portanto, nem apenas um locaute, mas a combinação do locaute com uma paralisação de fato dos trabalhadores que percebem seus interesses envolvidos ali. A contradição fundamental entre patrões e empregados não aparece nesse processo. Aqui há uma contradição principal comum que reúne pelo menos temporariamente os dois grupos: é a que envolve empresários e caminhoneiros e a política do governo golpista. Isso pode ser temporário porque não há de tardar que caminhoneiros coloquem em questão o nível de exploração e riscos aos quais estão submetidos pelas transportadoras.

Mas, por fim, resta falar de outro grupo, que tem mesmo entre os caminhoneiros forte expressão: aqueles dessa nova, obtusa e de toda equivocada “direita” brasileira, que tem preenchido as ruas, o mundo virtual e as fossas sépticas pelo Brasil afora desde 2013. Há, sem dúvida, uma porção de tresloucados que clamam pela ditadura militar e que percebem no movimento dos caminhoneiros uma oportunidade para pastar e relinchar a vontade. Mas somente se sentem a vontade por duas razões: primeiro porque o movimento dos caminhoneiros é capaz de paralisar praticamente o país, dado o peso (uma burra opção feita ali nos anos 1950 em favor da indústria automobilística) do transporte rodoviário, gerando profunda insegurança na população; segundo, porque os caminhoneiros são, como regra, politicamente conservadores. Não vamos nos alongar demais nisso, mas assim como motoristas de táxi, esse grupo de caminhoneiros que se vê como autônomo tende a perceber a sua condição de maneira cada vez mais individualizada e dependente dos seus méritos pessoais. Para esses grupos qualquer modificação na “ordem” é uma grande ameaça. Politicamente, possuem disposições bastante similares às da pequena burguesia.

É a soma das disposições políticas mais gerais dos caminhoneiros e dos alucinados com camisa da CBF que faz aparecer como algo forte a ideia da “intervenção militar”, ainda que não haja militares dispostos a fazê-lo e nem haveria razão para tanto.

Por fim, restou um grupo, esse com posições mais progressistas, de esquerda, que se dividiu na análise do processo. Alguns viram ali apenas o locaute; outros um movimento dos trabalhadores apenas; nos extremos, teorias da conspiração diversas sobre um movimento orquestrado para a instalação de uma nova ditadura ou a possibilidade de expandir a greve para outros setores a fazer a revolução socialista. Enfim, uma porção de análises que não conseguem lidar, no geral, com as contradições do movimento mas, principalmente, com dados da realidade objetiva muito mais simples e notórios.

Na minha perspectiva não vivemos uma crise que vai além das reivindicações justas de um grupo de trabalhadores e da fusão deles com os interesses mais imediatos de empresários que pretendem arrancar vantagens de um governo fraco, ilegítimo e que nada tem mais a perder. Que os efeitos dessa paralisação são grandes todos estamos vendo. Mas não há razão para enxergar aí nem o aprofundamento do golpe, muito menos a revolução. No primeiro caso, porque caminhamos para o fim desse governo e a possibilidade da realização do projeto golpista: passar às mãos do PSDB via eleições o comando da agenda neoliberal no país, com Lula preso e sem adversários mais difíceis de serem batidos.  No segundo caso, ficar dizendo, à esquerda, que o movimento dos caminhoneiros abre a possibilidade de fazermos uma greve geral e, daí, derrubarmos o governo golpista e instalarmos um governo revolucionário e popular é apenas sonho do revolucionarismo pequeno-burguês. Nós, da esquerda, fomos incapazes de evitar o golpe dessa quadrilha mequetrefe. E não evitamos o golpe porque não quisemos: não tivemos força política e base social para isso. É a partir desse tipo de constatação objetiva e concreta que precisamos pensar a realidade e as possibilidades que temos nessa conjuntura e no futuro próximo.

Claro que as imprevisíveis reações da população podem mudar as coisas e ninguém aqui tem bola de cristal ou pretende prever o futuro (na Praia Grande – SP, por exemplo, tem ocorrido saques a supermercados e “arrastões”). Mas a tendência é que logo as coisas retornem aos seus lugares, com as condições de vida dos trabalhadores brasileiros piorando, como já vinha ocorrendo. Fica a necessidade de lutar para que ocorram as eleições de outubro e emplacar uma derrota eleitoral ao menos nos golpistas: essa é, na correlação atual das forças, a hercúlea tarefa da esquerda consequente e de setores progressistas do Brasil. O resto é conversa fiada, pataquadas de extremos da esquerda e da direita.

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