Cesar Mangolin
Dilma concorreu as eleições com outros 10 candidatos Seis deles eram ex-petistas. Eduardo Jorge (PV), Marina Silva (PSB), Luciana Genro (PSOL), José Maria (PSTU), Mauro Iasi (PCB) e Rui Costa Pimenta (PCO). Nenhum deles apoiou o PT no segundo turno…
Os dois primeiros já estavam no colo da direita e se juntaram ao PSDB. O PSOL, que teve o mérito de pelo menos perceber as contradições do processo, liberou a militância para o voto, desde que não fosse em Aécio. Os dois partidos trotskistas fizeram o de sempre: declararam o voto nulo. O PCB, infelizmente, lhes seguiu os passos.
Claro que há razões apenas políticas (ainda que equivocadas na minha opinião) para a tomada de posição desses partidos, mas como não pensar que a coincidência dos ex-petistas não agrega no jogo uma pitada de questões subjetivas?
Sempre considerei o PT uma esquerda anticomunista. Valeria escrever um dia sobre isso e tentar colocar no papel de forma mais sistemática essa compreensão. Mas percebo a formação de uma esquerda antipetista, que me parece viver de dois impulsos: o esquerdismo e os rancores pela militância pregressa.
Alguém um dia criou a alcunha “viúvas do PT”… Independente daquele contexto, poderíamos pensar hoje que existe gente sofrendo de viuvez ou dos dramas do adultério… A viuvez faz lamentar aquele que não voltará jamais… O traído vive a mistura da saudade e do rancor raivoso por aquele que um dia acreditou ser o companheiro ideal para seguir até o final dessa jornada… Lembro bem, ali ainda no final dos anos 1980 e começo da década de 1990 como muitos dos que hoje engrossam as fileiras de outras organizações declaravam a certeza e o amor à alternativa popular e (na cabeça deles) revolucionária que significava o PT.
Viuvez ou adultério, pouco importa, o fato mesmo é que a chamada esquerda revolucionária é composta por partidos que saíram de dentro do PT (PSOL,PSTU e PCO) ou que recebeu militantes oriundos do PT (como o caso do PCB) ali na metade do primeiro mandato de Lula, que passaram a cumprir importantes papéis de direção e participaram de mudanças qualitativas na linha política e na organização. Há, sem dúvida, aspectos positivos nisso: o PCB ainda nas eleições de 2004 estava em coligações de direita por onde estava organizado. A partir de 2005 as coisas mudaram, mas guinaram ao esquerdismo.
As referidas organizações possuem o mérito de manterem, afirmativamente, a bandeira do socialismo e da necessidade do processo revolucionário vivos, mas que (e por razões diversas) não conseguindo participar das lutas concretas e das contradições realmente existentes em nossa conjuntura, atuam negativamente com relação à própria possibilidade de avanço desse processo, embora ressalvas devam ser feitas com relação ao PSOL, que tem feito um esforço em participar, a seu modo, da vida concreta. Além de PCB, PCO, PSOL e PSTU, há mais uma infinidade de “coletivos”, “agrupamentos”, “ligas” e outras coisas que possuem, cada qual a sua maneira e de forma cada vez mais isolada, um belo discurso revolucionário e “vanguardeiro”. Quanto menores e mais distantes da realidade, mais esses pequenos grupos se apresentam como os portadores da verdade revolucionária.
Confundindo a realidade objetiva com a própria vontade (como é próprio do esquerdismo) esses grupos confundem o objetivo revolucionário (estratégico) com as mediações necessárias e cambiantes de cada conjuntura (a tática): ao afirmar a necessidade da revolução, afirmam também que as condições para que ela ocorra já estão presentes, atribuindo aos traidores da classe (como é próprio do trotskismo) ou a pequenos ajustes conjunturais a razão do seu atraso. Não é raro dirigentes dessas organizações verem a “protoforma do proletariado revolucionário” em ação nas ruas, mesmo quando temos apenas uma manifestação massiva e plena de contradições com tendências majoritárias à direita como foram as tais “jornadas de junho”. O revolucionarismo pequeno-burguês, mesmo que tenha participado daqueles eventos à reboque e a duras penas com seu reduzido número de militantes, tende a ver-se como a essência cristalina e pura da transformação como mero ato subjetivo da vontade. Não conseguiram explicar até hoje como o “proletariado revolucionário” das ruas de junho apareceu depois, nas urnas, como eleitores de Aécio Neves e de Marina Silva e hoje se apresenta como a base social que pede o impeachment de Dilma e/ou a ditadura militar… Insistem apenas em proclamar-se os fiéis representantes da “rebeldia das ruas”, ainda que ela não ocorra…
O silêncio dessas organizações sobre a escalada de direita e golpista que vivemos é sintoma de sua ausência de realidade, de sua incapacidade de análise concreta da situação concreta, de uma posição moralista derivada daí (o famoso “isso é culpa do próprio PT que blablablabla…”) e de um ranço que apenas posso compreender como subjetivo (a viuvez ou o adultério…) que cega a todos ou parte de seus dirigentes.
Mas há dois argumentos rápidos que devem ser apresentados para justificar uma ação contrária à escalada da oposição à direita: um é sócio-econômico e mais óbvio; outro é somente político e também óbvio, não fosse a cegueira dos nossos dirigentes. Mas dizer o óbvio tornou-se praxe dos nossos dias…
Mas vamos ao primeiro: o governo de Dilma e os governos do PT têm problemas, não há dúvida. O partido ajustou-se perfeitamente à lógica do jogo capitalista, assim como todo e qualquer governo anterior, assim como todas as instâncias pelo país afora, assim como quase todos os partidos. São governos que jamais pretenderam ou prometeram fazer além do que fazem: gerenciar o capitalismo brasileiro concedendo ou reconhecendo alguns direitos a mais aos trabalhadores e às populações mais empobrecidas. Não acho, no entanto, que isso seja pouco, ou que seja desprezível.
Li, ano passado, um texto de um partido da esquerda que defendia que as duas candidaturas no segundo turno eram iguais: uma era capitalismo com mais Estado, a outra com menos… Burrice: mais ou menos Estado, nas nossas condições objetivas, significa retirar ou lançar muita gente na miséria absoluta e isso deveria interessar bastante aos que lutam ao lado dos trabalhadores…
Constatar que os governos de Lula e Dilma servem ao grande capital é como afirmar com tom de descoberta científica que fogo queima e água molha. Não apenas o de Dilma e Lula, mas também os de FHC, de Collor, de Sarney, os dos generais da ditadura… Para marxistas deveria ser bem óbvio que, dentro da ordem burguesa, não apenas o Estado, mas toda a estrutura jurídico-política serve ao grande capital. O mesmo serve também para o tratamento dos limites dos processos eleitorais dentro dessa ordem. O que falta aqui é perceber, a partir da análise da nossa conjuntura e não da que a vontade desejava que existisse, que a ordem burguesa, assim como o processo revolucionário, não são estáticos, portanto, são plenos de movimento e de contradições. É tendo como referência o objetivo estratégico que as mediações com a vida real precisam ser construídas. Isso significa participar da vida e das lutas do cotidiano dos trabalhadores, das condições severas e adversas que abrem as possibilidades de avançar um passo aqui e recuar outros ali. Significa atuar em todas as contradições possíveis dentro da ordem burguesa, no sentido de aguçá-las. Não podemos afirmar que os governos Lula e Dilma são a mesma coisa que os governos de FHC. O esquerdismo é leviano e irresponsável quando faz isso. Há, sem dúvida, uma melhora nas condições de vida dos trabalhadores, em particular dos mais empobrecidos. Mudanças que, aliás, têm mudado o cenário de alguns cantões do Brasil, utilizados até pouco tempo atrás como reserva de votos de legendas da direita, como o DEM.
Enfim, não é possível fazer festa para os governos do PT, sem dúvida, como fazem o próprio partido e alguns de seus aliados de sempre do campo da esquerda, como o PCdoB. Que o governo serve aos interesses do grande capital não há dúvida, mas isso não nos deve permitir negar que ocorreram mudanças, mudanças qualitativas, que abrem e podem ainda abrir novas contradições, tanto entre frações do capital (a financeira e a industrial, por exemplo), como abre possibilidades para a atuação dos setores mais avançados da esquerda, com possível acesso a áreas e a contingentes de trabalhadores que, tendo necessidades básicas sanadas, abrem-se também para a possibilidade de outras soluções, para além do clientelismo do Estado, pelo menos em princípio para simplesmente ter acesso a condições mais favoráveis de vida. Para que isso ocorra necessitamos de organizações comprometidas com a estratégia revolucionária, mas que tenham os pés bem grudados no chão e sejam capazes de participar dessas lutas, desse processo. Vejam que falo do “possível”: isso significa que as contradições que se abrem apenas podem ser resolvidas ou aguçadas favoravelmente aos trabalhadores caso tenhamos uma ação consequente, que saiba apontar a contradição, o caminho de sua resolução e os limites do resultado dentro dessa ordem…. Apenas com forte trabalho inserido e a partir dessas novas possibilidades há construção efetiva de organizações revolucionárias e a possibilidade, no longo prazo, da retomada concreta da perspectiva socialista…
Fora essas novas e as antigas possibilidades, fora as novas contradições que esse ciclo gera, é necessário ter responsabilidade com aqueles que estão mais fragilizados pela pobreza extrema. Ainda que sejamos ainda um país de pobres, esse período recente conseguiu retirar da fome milhões de pessoas. Isso somente é um dado secundário para quem está com o buchinho cheio e olha o Brasil a partir da janela fechada do carro e vê apenas a Avenida Paulista, sonhando com a Champs-Elysées… A manutenção desses programas e a luta popular para que avancem para além disso deve ser uma bandeira de luta das organizações mais avançadas.
Isso nos remete ao segundo argumento, que apresento de forma rápida e direta: nossos dirigentes confundem elementos teóricos que utilizamos para pensar o modo de produção capitalista com a conjuntura política que é cambiante e exige maior criatividade. Exemplo para ir ao cerne da questão: o Estado, segundo Marx e Lênin, é sempre um Estado de classe. De alguma forma, a existência do Estado sempre será a ditadura de uma classe sobre outras, o “comitê executivo” da dominação de classe etc.. Isso é verdade e característico também das formações sociais capitalistas. Mas essa que é uma ditadura de classe historicamente se reveste na forma da democracia burguesa em períodos mais ou menos longos… O elemento fundamental que faz com que essa ditadura de classe seja obrigada a conviver com maiores ou menores liberdades democráticas é a luta de classes.
Objetivamente, é a capacidade de organização política dos trabalhadores e suas organizações que forçam, alterando a correlação política de forças, conquistas sociais e também espaço de ação política. Penso que somente os tolos podem acreditar que as condições de uma ditadura escancarada pode ser mais favorável à organização dos trabalhadores que as possibilidades de ação “abertas” pela democracia burguesa… É neste cenário que devem atuar e, portanto, todas as organizações dos trabalhadores devem lutar com todas as forças contra o golpismo em marcha, seja na forma da ditadura, seja na forma do golpe à paraguaia…
Isso não faz ninguém virar petista (ou retornar ao PT)… Isso é apenas atuar na nossa conjuntura politicamente e não de forma moralista, tendo clareza da nossa realidade concreta, atuando e aguçando suas contradições. Engrossar o cordão da direita fazendo oposição pela esquerda é um suicídio político. Falam línguas diferentes, mas falam a mesma coisa. A deposição da presidente na atual conjuntura representa um grande retrocesso para os trabalhadores brasileiros. É necessário ser bastante estúpido para tratar disso analisando “culpas”, ou afirmando que esse problema não é dos revolucionários…
Essas organizações, porém, com exceção do PSOL (até certo ponto), não possuem força política alguma… Pois então: atuar na conjuntura concreta, sem a postura moralista e infantil que tem marcado suas resoluções, é o único caminho e possibilidade que possuem de ter alguma relevância política. Os partidos trotskistas jamais compreenderão isso, mas o PSOL e o PCB (que tem agido e pensado, sintomaticamente, como uma organização trotskista) têm aberta a possibilidade e têm também o dever de abrir caminho para alternativas reais e concretas à esquerda. Isso somente se constrói com a inserção nos movimentos sociais e lidando com a realidade.
Mas o esquerdismo é implacável… As eleições passadas servem de exemplo. Repito aqui algo que escrevi naquele momento: A ausência de estrutura material e o desigual acesso aos meios de comunicação de massa justificam parcialmente a parca votação das candidaturas da esquerda. Mas devemos também considerar suas dificuldades em dialogar com os trabalhadores há muitos anos e de participar dos problemas e das lutas cotidianas. Ao apresentar apenas o horizonte estratégico (socialista), sem as devidas mediações, essas organizações acabaram por se fechar ainda mais no universo pequeno-burguês que combina com sua linha política escatológica. Orgulham-se de não fazer política porque assumem o dever (moralista) de não lidar com nada que não seja diretamente a revolução. Como ela não chega logo, da mesma forma que para os cristãos Jesus demora em voltar, vivem de apontar os dedos para os que se maculam nas fétidas águas da realidade objetiva. E tocam a vida satisfeitos e plenos de razão…
Portam-se como quem chega virgem aos 100 anos e nada mais lhe resta a não ser autovalorizar a própria pureza, ainda que ninguém se importe com isso.