Ser ou não ser Charlie: será esta a questão?

Cesar Mangolin

O atentado de Paris gerou reações de todo tipo, que se colocaram entre duas posições: “Eu sou Charlie” – “Eu não sou Charlie”… Sem dúvida, no primeiro momento, o “Eu sou Charlie” ganhou força por causa do impacto do acontecimento. Mas logo na sequência muitos começaram a fazer críticas ao trabalho dos jornalistas e a levar em conta o contexto no qual estava inserido o jornal, o que os levou a tomar a posição contrária. Embora tenham aparecido textos muito lúcidos, houve também aqueles que exageraram na dose, como sempre… Não tenho dúvida que se o atentado fosse num país islâmico e não no coração do imperialismo ocidental o impacto mundial seria muito menor, assim como foi o massacre de duas mil pessoas na Nigéria na mesma semana… Com maior ou menor peso nas mídias, tratam-se, evidentemente, de duas grandes tragédias.

Houve ainda os que avançaram em teses obscuras, visto que não possuem elementos precisos para as afirmações que fizeram. Um certo grupo político se apressou a afirmar que a ação era, na verdade, do Mossad e da CIA, numa conspiração para atritar ainda mais o ocidente com o mundo islâmico e, ao mesmo tempo, auxiliar a escalada à direita nos países do centro do sistema e na França, objetivamente.

Ora, seria impossível que tudo não passasse de uma armação de Israel e das potências ocidentais que dão guarida à sua sanha assassina no Oriente Médio? Não! Não seria impossível. Mas o fato mesmo é que tal conspiração somente poderia ocorrer porque os acusados seriam capazes de fazê-lo pelos motivos alegados… Tento explicar: somente posso fazer algo e tentar atribuir a culpa a outrem se esse outro sujeito parecer ao que vai julgar o ato capaz de realizá-lo da mesma forma e pelos motivos alegados. Portanto, se foram os grupos islâmicos radicalizados e não reconhecidos pela maioria dos muçulmanos, ou se foram os fascínoras de Israel e do ocidente judaico-cristão, vale mesmo é compreender que ambos seriam capazes de cometer (e cometem constantemente, embora desproporcionalmente) a mesma estupidez.

Minha reflexão, portanto, vai mais no sentido do ato em si e menos na tentativa de descobrir quais foram seus responsáveis. Não esqueçamos que tanto o Estado Islâmico quanto a Al Qaeda se apressaram em assumir os ataques…

Houve os que, também apressadamente, trataram os jornalistas mortos como um atentado à esquerda francesa, assim como outros que os demonizaram na semana seguinte… A pressa e a precisão não caminham na mesma marcha.

Nem mártires, nem demônios. Mas o primeiro argumento é ruim… Que o jornal e alguns de seus membros tenham um passado recente ligado à esquerda francesa não há dúvida, mas currículo é um negócio que em política vale muito pouco. Eu sinceramente acredito que insultar a religião alheia de forma sistemática rompe a barreira do que pode ser considerado humor, mas principalmente alimenta a já elevada perseguição que sofrem imigrantes em solo francês, assim como torna as parcerias de França com os EUA realizando “atentados de Estado” pelo Oriente afora mais palatável ao povo francês. Quem duvida que o governo francês receberia amplo apoio para uma resposta desproporcional e violenta contra supostas bases dos “terroristas” em outros países? Dentro da França os muçulmanos têm sofrido perseguições e violências de todo tipo…

Também não considero progressista ou de “esquerda” caricaturar uma ministra negra num corpo de macaco, como fizeram os jornalistas em questão… O efeito, internamente, é o mesmo.

Mas nada disso, evidentemente, justifica a desproporcionalidade da reação, embora seja sempre bom pensar em quantos cidadãos franceses, imigrantes ou filhos de imigrantes, sofreram violências respaldadas por esse tipo de humor, assim como brasileiros negros, nordestinos, homossexuais, nativos etc… Quantos morreram por ações amparadas pela construção cotidiana desses estereótipos preconceituosos? Difícil contabilizar, ainda mais se levamos em conta que morrer não depende apenas de um tiro: podemos matar pessoas e gerações inteiras sem nenhum ato de violência direta.

Sempre insisto com os estudantes que precisamos questionar os pressupostos teóricos de uma proposição ou teoria qualquer para poder verificar se está próxima da realidade concreta. Não sou adepto do relativismo teórico, nem do chamado pós-modernismo, que caiu tão bem para gente que tem preguiça de estudar e povoa as universidades brasileiras. Marx fez a crítica da economia política porque conseguiu, antes, por abaixo seus pressupostos…

Enfim, a questão não é ser ou não ser Charlie, nem o elemento principal é saber se foram os islâmicos radicalizados ou o Mossad (do nazi-sionismo assassino) os responsáveis pelo atentado. A grande questão é: quais são os pressupostos históricos e teóricos que explicam a ação e a reação?

Isso exige estudar um tanto para os que não se dedicaram a pensar nossa história dos últimos séculos, em particular a ação do Ocidente no período da expansão colonizadora, depois, já no capitalismo, na fase imperialista. Os franceses comovidos parecem nunca terem tomado conhecimento das atrocidades que cometeram há poucas décadas contra os argelinos…

E não é apenas para entender, sem dúvida. Precisamos urgentemente envolver muito mais pessoas na tarefa coletiva de construção de uma nova organização social, que tenha como pressupostos a cooperação, o fim da exploração do homem pelo homem, a igualdade e uma vida material confortável para todos e para que todos possam viver em paz suas diferenças.

Somente a igualdade coletiva permite viver e respeitar as diferenças. O contrário de igual é desigual, não diferente. Na desigualdade o resultado é a massificação e a violência estúpida por todos os lados.

4 comentários sobre “Ser ou não ser Charlie: será esta a questão?

  1. Muito bom o texto professor. Adorei a frase: “insultar a religião alheia de forma sistemática rompe a barreira do que pode ser considerado humor”, realmente, esse foi um péssimo tópico escolhido, não devemos desrespeitar nenhuma crença ou religião, claro que cada um tem sua opinião para esses assuntos, mas devemos guarda para si mesmo e respeitar o ser humano.

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    1. Valeu Iêda! Apenas insistir numa coisa: respeitar não significa deixar de fazer a crítica e acreditar não significa deixar de fazer a autocrítica. É necessário que constantemente estejamos atentos e críticos com relações ao que nos rodeia e, ao mesmo tempo, críticos com as coisas nas quais acreditamos. Por vezes, tratar com humor e com um tanto de ironia algumas coisas ajuda a fazer pensar e isso é bom. No caso do episódio em pauta, concordo com você que um limite foi transposto, o que não justifica, evidentemente, o assassinato dos jornalistas. Mas fico feliz que tenha lido o texto e o criticado. É o melhor que pode ocorrer para quem escreve. Beijo!

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  2. Texto curto, porém bastante elucidativo. Mangolin sempre possibilitando aos seus leitores um olhar histórico sobre os acontecimentos e, mais que isso, trazendo novos questionamentos (o que vai na contramão da grande mídia) para uma análise mais apurada dos fatos.

    Gracias!

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  3. Ótimo texto. traz uma reflexão mais holística sobre o tema. De modo geral, os principais órgãos da mídia ocidental não só não trazem subsídios para abordagens mais amplas, como obliteram qualquer abordagem que privilegie uma análise de longo prazo ou que traga uma visão policromática do assunto. Qualquer discussão que não esteja ligada aos valores defendidos e preconizados pelos grandes conglomerados midiáticos é prontamente refutados. Assim, esta proposta de reflexão que vai além do “quadrado” se torna ainda mais relevante.

    Abraços.

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